quinta-feira, 24 de março de 2022

Miss Marx (2020) de Susanna Nicchiarelli



por Joaquim Simões

A realizadora italiana Susanna Nicchiarelli causou algum impacto em Veneza com o seu penúltimo filme, Nico, 1988, filme que retrata os últimos dias da cantora alemã. A atitude punk que demonstrou nesse filme está inteiramente presente em Miss Marx, um biópico sobre Eleanor Marx, ativista política e filha mais nova de uma das figuras mais importantes da filosofia e política dos últimos séculos, o próprio Karl Marx. 

Jenny Julia Eleanor Marx, conhecida entre família como “Tussy”, nasceu e viveu na Inglaterra, onde para além de tradutora da obra do seu pai, foi também uma ativista socialista empenhada na luta pelos direitos dos trabalhadores, pela emancipação das mulheres e pela abolição do trabalho infantil. Mas o filme foca-se na outra realidade da sua vida, a realidade doméstica vitoriana, em que - apesar de toda a luta exterior - Eleanor se encontrava também na condição de oprimida passiva. Tendo-se apaixonado e casado com o dramaturgo Edward Aveling, Tussy vê-se cada vez mais embrenhada numa vida em que é infeliz, traída por um marido que não a compreende e que vem a descobrir já ter sido casado com uma jovem atriz, com quem continuava comprometido. A dada altura no filme surge entre Eleanor e Edward um diálogo que expõe sem rodeios a realidade da situação do casal, o único tão brutal durante o filme - depois surgem os aplausos; percebemos tratar-se apenas de uma representação da peça de Ibsen, “Casa de Bonecas”. Esta cena, talvez a mais conseguida do filme, condensa nela a tragédia da vida de Eleanor. Em Março de 1898, com 43 anos de idade, Eleanor suicidar-se-ia, envenando-se. 

Tomando uma abordagem algo reminiscente daquilo que Sofia Coppola fez em Marie Antoinette, este drama de época contrasta um formalismo rígido, composto por enquadramentos perfeitos e simétricos e uma decoração vitoriana irrepreensível, com sequências de fotografias documentais de motins e revoltas ao som de música punk contemporânea, evidenciando a intemporalidade da atitude revolucionária e demonstrando que as lutas de há dois séculos atrás são ainda atuais.

quarta-feira, 16 de março de 2022

Benedetta (2021) de Paul Verhoeven



por André Miranda

Foram quarenta anos a percorrer o deserto, passando fome e sede, queimando a sola dos pés na agrura quente da areia. Quarenta anos até alcançar Israel. Moisés à frente, desde o Egipto, atravessando mares, combatendo povos inimigos. Até o dia em que foi avistado o rio Jordão. Do lado de lá, a Terra Prometida. O alívio e esperança que deve ter enchido todos aqueles corações. O povo escolhido cumpria o destino, assim como Moisés cumpriria o seu. Deus tomou forma e anunciou o que Moisés já sabia: que só com o olhar tocaria Israel, aguardando-lhe a morte do lado de cá do Jordão. 
 
A travessia de Benedetta é mais simples. Acompanhada pela família, viaja ao convento de Pescia, onde se devotará a uma vida casta de oração. Pelo caminho, a caravana é interrompida por um bando de homens de índoles pontiagudas. Vorazes, ameaçam e exigem ouro a troco de nada. Excitam medos nas pobres almas. Exceto na alma de Benedetta, que avança sem temor e, com ajuda divina, comanda um pássaro a defecar no olho do líder dos gatunos. Este desbraga-se a rir, encantado com tão curioso feito. Abandona os melífluos intentos. Deus vence mais uma vez. 
 
É Benedetta já adulta, quando entra no convento Bartolomea. Esta, noviça, não conhece os cantos à casa e precisa da ajuda da experiente Benedetta para encontrar a latrina. As duas aliviam-se em conjunto e, pouco depois, trocam um beijo. Fruto ou não da culpa e da avidez reprimida, Benedetta é acometida de visões. Jesus chega-lhe de várias formas e clama-a esposa. Este não lhe é casamento muito favorável, pois a violência das aparições e exigências é tal que a lança sobre a cama, doente. As mãos e os pés abrem-se como se a houvessem crucificado. Só pode ser milagre. Quem não vai na cantiga é a madre superiora. É verdade que as chagas existem e vertem continuamente, mas faltam as marcas na testa da coroa de espinhos. Não seja por isso, poucos momentos depois as feridas aparecem, não se sabe se por intercessão divina ou hábil mão terrena. 

A madre é deposta. É por demais evidente que a escolhida do céu é Benedetta. Eleita líder do convento, depressa extingue o calor há tanto contido. Deleita-se com Bartolomea em deflagrações carnais. Até figura santíssima, depois de lhe ser dada forma apropriada, colabora na satisfação do desejo. No entanto, o paraíso é de pouca dura. A ex-madre, ressentida pela usurpação, encontra-se com o núncio, convence-o a viajar até Pescia e impor ordem em convento tão transviado. Mas é tarde demais. A peste ronda. Os gânglios incham de pestilência e a morte canta. A vida purifica-se em estertor de chama.

quinta-feira, 10 de março de 2022

Gûzen to sôzô (2021) de Ryûsuke Hamaguchi



por Alexandra Barros

O efeito borboleta foi uma metáfora utilizada pelo meteorologista Edward Lorenz, para explicar a impossibilidade de prever fenómenos atmosféricos para além dos dias mais próximos. A imagem do bater de asas de uma borboleta como origem de um tornado no outro lado do mundo serviu para ilustrar a descoberta que levaria à formulação da Teoria do Caos. Variações pequeníssimas, e aparentemente insignificantes, nas condições iniciais, geram cadeias de acontecimentos muito diversas entre si, tornando impossível prever o comportamento de sistemas dinâmicos. 

Roda da Fortuna e da Fantasia é o efeito borboleta de Ryûsuke Hamaguchi para ilustrar a imprevisibilidade das relações afectivas. Reúne três histórias de (des)amores, que afinal são quatro. Logo no primeiro conto, um duplo final mostra que, para estas histórias serem completamente diferentes, bastaria introduzir pequenas alterações na corrente de acontecimentos. 

Tsugumi conta a Meiko um encontro com um rapaz por quem se apaixonou e por quem supõe ser correspondida. Meiko percebe tratar-se de Kasuaki, um ex-namorado que ela traiu, provocando o fim da relação. Meiko nada revela à amiga acerca desta coincidência inusitada. Decide no entanto visitar Kasuaki para perceber o que sente(m). Fica claro que ainda se amam apesar dos dois anos de separação. Kasuaki não consegue decidir com quem quer ficar, Meiko não consegue decidir se quer ficar com Kasuaki. O que impede duas pessoas que se amam de se amarem? 

Um encontro fortuito de Kasuaki com as duas amigas acaba de forma desastrosa para todos, quando Meiko reagindo de forma impulsiva à reunião inesperada do triângulo amoroso, faz um ultimato a Kasuaki. Ou então não. Afinal Meiko toma outra decisão e o final é um agridoce happy end

Na segunda história, uma aluna, Nao, tenta seduzir o professor Segawa a pedido de Sasaki, um colega com quem mantém uma relação extraconjugal. Movido por um desejo de vingança, suscitado por uma suposta injustiça, Sasaki pretende envolver Segawa num escândalo sexual. Mas Nao, intrigada com a indiferença do professor face à tentativa de sedução, acaba por revelar as suas intenções. 

Cartas postas na mesa, começam as autênticas seduções e Nao e o professor chegam a um feliz entendimento secreto. Todavia os segredos e as mentiras têm perna curta, de acordo com a sabedoria popular. Num momento de grande tensão, Nao distrai-se e comete um erro que torna o envolvimento público. Esses breves segundos têm consequências desastrosas para os dois. 

Na terceira história, duas mulheres encontram-se na rua e julgam reconhecer-se. Afinal, nenhuma é quem a outra julga ser. Há no entanto uma simpatia e compreensão mútua tão natural que, logo nesse primeiro encontro, uma relação profunda nasce entre as duas. Confessam pesos de consciência e exorcizam acontecimentos do passado. Finalmente um final gracioso e ternurento. O tríptico fecha assim em contraponto às angustiantes reviravoltas ditadas pelas ocorrências improváveis e imprevisíveis das primeiras histórias. Os acasos também podem ser felizes. 

Na complexa teia das relações humanas, amores e solidões dependem tanto ou mais de acontecimentos fortuitos do que dos próprios sentimentos. Erros e mal-entendidos conduzem ao afastamento de quem melhor estaria acompanhado do que só. Coincidências, actos falhados, acasos ditam os nós que se desfazem e os laços que se atam. Este universo tem semelhanças com o de Hong Sang-soo[1] , além do mais pelos seus duplos, trocas de lugar e substitutos, triângulos amorosos, segundas oportunidades, destinos ditados não se sabe bem pelo quê. 

Einstein terá afirmado que Deus não joga aos dados. Desta forma expressava a sua rejeição do indeterminismo e incerteza inerentes às leis da física quântica que regem o mundo subatómico. Ryûsuke Hamaguchi, por sua vez, parece querer dizer-nos que o indeterminismo e a incerteza são as forças motrizes das interacções humanas, que a natureza dessas ligações é indecifrável e que o respectivo sucesso ou fracasso é ditado por uma roda da fortuna e fantasia. 

[1] Realizador sul-coreano a quem o Lucky Star já dedicou um ciclo (Mulher na Praia, O Filme de Oki, O Dia Em Que Ele Chega, O Dia Seguinte, A Mulher Que Fugiu)

quarta-feira, 2 de março de 2022

Le sel des larmes (2020) de Philippe Garrel



por João Palhares

Philippe Garrel nasceu em 1948 na comuna de Boulogne-Billancourt. É filho de Maurice Garrel, actor secundário bastante requisitado durante os anos 60, em que trabalhou com Jacques Rozier, René Clément, François Truffaut, Christian-Jaque, entre outros, antes de entrar na primeira longa-metragem do jovem Philippe, Marie pour mémoire, em 1967. Admirador assumido de Jean-Luc Godard, Garrel filho junta-se ao grupo Zanzibar na Primavera de 1968, para o qual realiza Le Révélateur e Le Lit de la Vierge (exibido pelo cineclube em Maio de 2018 numa sessão em parceria com a Civitas Braga, pela ocasião dos cinquenta anos do Maio de ’68). 
 
Num texto fabuloso em que descreve também os seus anos de juventude, “O Cinema do FIlho”, escrito para o catálogo da Cinemateca dedicado ao cineasta francês, Jorge Silva Melo consegue dar uma ideia do que foi conhecer o Garrel desses primeiros anos, farol desgarrado e desregrado para uma geração que se queria soltar duma ditadura, distanciar-se dos pais e das instituições, ver mundo e conhecer os outros, as outras, cantar, fumar, dançar, filmar sem som e sem filtros, fazer amor, tocar, beber, formar uma banda, recitar poesia, dar mundos ao mundo sem um vintém, fazer coisas para não estar parado, mudar o mundo e as consciências através da arte, não separar a arte da vida, sonhar, conspirar em cafés, e “poder um dia ir filmar ao México, ao Egipto, na Itália, onde nos levasse o vento, fazendo explodir as formas como rebentam, belas, hugolianas, as ondas do mar, anos a fio, sem plano de trabalho, sem obrigações financeiras, vivendo à boleia da vida como os santos de Assis, em inocência comunitária.”[1]
 
Levado também pelo vento, nos anos 80 Garrel vira-se para os guiões e na viragem dos noventa para o novo século passa a filmar maioritariamente a preto e branco, estética por que é hoje geralmente conhecido apesar de ter feito mais que uma mão cheia de filmes a cores (Anémone, 1968, La cicatrice intérieur, 1972, Le berceau de cristal, 1976, o seu segmento de Paris vu par… 20 ans après, 1984, Les ministères de l’art, 1989, J’entends plus la guitare, 1991, O Coração Fantasma, 1996, Le vent de la nuit, 1999, e Un été brûlant, 2011). Descrevendo um pouco essas transformações e esses desvios, em 2017, o realizador francês confessou que “eu acho que se pode falhar ou ser bem sucedido em qualquer altura da nossa vida, e um artista nunca melhora, é apenas fiel a si próprio e à sua identidade como artista—e claro que passa por diferentes fases na vida. Desde que comecei a fazer filmes, que gosto de alguns e doutros não gosto tanto, e isso não mudou em 50 anos, sabes—no princípio, era igual ao que é hoje. Acho que nenhuma mudança depende de uma época, ou dos tempos que mudam. 
 
“O que mudei foi a minha maneira de fazer filmes. Durante 15 anos, os meus filmes nunca eram escritos, não tinha argumento nenhum. Depois comecei a escrever filmes, percebi que as minhas mudanças dependiam—as mudanças que ocorreram na minha vida, como um pintor—dependiam das mulheres que amei e com quem vivi. E foi isso que influenciou o meu estilo. Portanto depende mesmo muito disso, e eu sei que passei por tempos e períodos em que uma mulher me estimulou a mudar o meu estilo e a fazer algo diferente. É exactamente como um pintor, sabes, quando um pintor passa por um certo período e o que muda é a atitude dele, não a sua arte. De certa forma, ele pode mudar o seu estilo, e foi assim que eu sobrevivi no ambiente do cinema em filmes populares ou filmes mainstream.”[2]
 
Nos últimos anos, houve novo desvio. Garrel decide deixar de filmar a burguesia, “porque se tornara insuportável a exposição dos seus valores e da sua linguagem. Não nos apercebíamos disso quando víamos um Visconti, que falava da aristocracia. Mas achei que, nesta época de crise mundial, se tornava obsceno. No cinema, se o padeiro é enganado pela mulher, temos pena dele; se for o patrão de uma fábrica, já não nos importamos. É um estado a que nunca voltarei. A ilustração da burguesia no cinema tornou-se desagradável.”[3] Assim, em O Sal das Lágrimas, Luc é um carpinteiro que vai a Paris para se tornar marceneiro. Vive com o pai em Linselles e tem de apanhar comboios e autocarros, fica em casa de um primo antes de ser aceite na École Boulle, conceituada faculdade francesa de belas artes, artesanato e artes aplicadas. O pai diz-lhe que o quarto é caro e ele parece sempre perdido na metrópole, como quando pede as indicações a Djemila, e permanentemente sem privacidade, como na sua tentativa de intimidade em casa do primo ou no esquema de co-habitação e conjugalidade que assume com Betsy. 
 
Perto da meia hora final de O Sal das Lágrimas, somos avisados pelo narrador de que Luc vai encontrar uma mulher à sua medida. Vemos Alice, de quem ainda não sabemos o nome, em segundo plano, mas quando o amigo dele, Jean-René, vai falar com ela e a convida para sair, ficamos com algumas dúvidas se será essa a mulher. Luc e Jean-René vão ter com Alice e uma amiga, Betsy, que será o par de Luc nessa saída à noite. Pode ser ela, mas ainda vão a um clube e encontram uma colega de escola de Luc, Lucie. Talvez seja ela. Só que já a conhecia e ela aparece num plano aproximado com outro colega de curso, Pablo, a olhar para a pista de dança e o que vêem é a resposta às nossas perguntas: Betsy, ao som dos Téléphone, é acompanhada pela câmara em todos os seus movimentos, enquanto troca de parceiros e procura os estímulos de que precisa sem prestar contas a ninguém, regressa o Maio de ’68, a libertação, o punk, o rock, a revisão dos valores vigentes que no fim das contas vai questionar se não será possível aquela vida aberta a três que Ernst Lubitsch e Jean Renoir, por exemplo, tanto romantizaram nos seus filmes (acima de todos, o fabuloso último segmento de Le petit théâtre de Jean Renoir) e que erradicariam os encornados e as encornadas deste mundo. Luc não o aceita, o que é surpreendente tendo em conta como tratou as mulheres que foi conhecendo ao longo do filme. O ser humano é fodido.

[1] in «Philippe Garrel - uma alta solidão», Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, 2003.
[2] in «Right and True: An Interview with Philippe Garrel», 24 de Abril de 2018, Notebook, MUBI.
[3] in «Philippe Garrel: “A monogamia triunfou mas não funciona”», Jornal de Notícias, 12 de Outubro de 2020.