quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

The Shop Around the Corner (1940) de Ernst Lubitsch



por António Cruz Mendes

Quando falamos de Lubitsch, geralmente recordamos os seus filmes realizados nos EUA, para onde emigrou em 1922. Em particular, os filmes que aí realizou na década de 30, onde o sexo e o dinheiro são os temas dominantes. Tome-se como exemplo Ladrão de Alcova (1932), as aventuras passionais, os roubos e as traições de dois vigaristas, Gaston e Lilly, que, em Veneza, passam por nobres e frequentam a alta sociedade. Os diálogos espirituosos, a elegância do argumento e a comicidade das situações conferem a esses filmes aquilo que se convencionou designar por “Lubitsch touch”, um estilo que, por trás de uma aparente frivolidade, esconde uma crítica mordaz à sociedade americana dos tempos da “grande depressão”. Crítica essa que, aliás, nos seus filmes, é extensiva ao “comunismo” (Ninotchka, 1939) e ao nazismo (Ser ou não Ser, 1942). 

O Lubitsch de A Loja da Esquina parece estranho àquele registo. As suas personagens não são milionários, nem aventureiros, mas pessoas comuns, preocupadas com a possibilidade de perderem o emprego ou de serem condenados a uma vida solitária e cinzenta na grande cidade. Porém, a elegância do realizador revela-se imediatamente quando, logo nas primeiras sequências, em breves apontamentos, nos apresenta as suas características individuais: a honesta frontalidade de Kralik, a receosa timidez de Pirovitch, a sabujice de Vadas, a esperteza de Pepi, a autoridade de Matushek, muito mais aparente do que real. 

Entretanto, algumas sombras negras pairam sobre aquele microcosmos da Matushek & Cia., onde todos parecem cumprir prazerosamente o seu papel. Por um lado, os gastos extravagantes da Senhora Matushek; por outro, as desconfianças do seu marido acerca da sua fidelidade conjugal. O sexo e o dinheiro, mais uma vez. 

É neste contexto que Kralik conta a Pirovitch que se corresponde com uma amiga que permanece incógnita, vendo crescer assim um amor que se deveria manter platónico (“que importa se és alto ou baixo, se os teus olhos são azuis ou castanhos”, “que interesse tem falarmos do como ganhamos a vida, se as nossas almas se enlaçam”?). E que chega à loja uma nova funcionária, Karla, com quem Kralik começa por embirrar. 

Entramos, então, num registo de comédia romântica, cujo desenvolvimento será o motor da história. Os cómicos quid pro quo, a ironia das situações, os diálogos brilhantes – aí temos o “Lubitsch touch” em todo o seu esplendor. Mesmo as situações mais dramáticas têm um desfecho divertido: o suicídio falhado de Matushek termina com a rápida transformação de Pipo, o moço de recados, em Sr. Katona, o vendedor; o violento desaguisado entre Kralik e Vargas, com a queda deste no monte das caixas musicais de cigarros que imediatamente desatam a tocar. O happy end inevitável, num quadro de festejos natalícios, não deixa indiferente a alma mais empedernida. 

A Loja da Esquina é um filme que se vê, do princípio ao fim, com um sorriso nos lábios. Boas festas!



quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Meet Me in St. Louis (1944) de Vincente Minnelli



por João Palhares

Meet Me in St. Louis é o terceiro filme de Vincente Minnelli, encenador norte-americano tornado realizador no início dos anos quarenta. É também o décimo terceiro filme da famosa Freed Unit, uma equipa de produção formada dentro da MGM pelo produtor e compositor Arthur Freed no rescaldo do enorme sucesso de O Feiticeiro de Oz, também com Judy Garland no papel principal. É a segunda colaboração de Minnelli com Freed, depois de Cabin in the Sky, 1943, e antes de Ziegfeld Follies, 1945, Yolanda e o Vigarista, 1945, Till The Clouds Roll By, 1946, The Pirate, 1948, Um Americano em Paris, 1951, A Roda da Fortuna, 1953, Brigadoon, 1954, Kismet, 1955, Gigi, 1958, e Bells Are Ringing, 1960. Mas, mais importante ainda, Meet Me in St. Louis, conhecido em Portugal como "Não Há Como a Nossa Casa", é a primeira colaboração de Vincente Minnelli com Judy Garland. Apaixonaram-se durante a rodagem, casaram-se, tiveram uma filha que também se tornou famosa, Liza Minnelli, e fizeram juntos mais quatro filmes, o fabuloso The Clock, de 1945, Ziegfeld Follies, Till the Clouds Roll By e The Pirate

Meet Me in St. Louis é um filme de Natal, feito como muitos filmes de Hollywood num rodopio e com dramas pessoais e colectivos permanentes. Houve atrasos na produção, ninguém estava satisfeito com o guião e acabou-se a rodagem para lá do previsto e muito para lá do orçamentado. O caso paradigmático, e que é para onde parece confluir tudo quando se fala ou escreve sobre este filme, é a canção Have Yourself a Merry Little Christmas. As letras apresentadas por Hugh Martin e Ralph Blane, na primeira versão, diziam “Have Yourself a Merry Little Christmas / It may be your last / Next year we may all be living in the past,” e tanto Garland, como Minnelli e Tom Drake acharam a canção demasiado deprimente e pediram que se fizessem mudanças, acabando por se substituir o segundo e terceiro versos por “Let your heart be light” e “Next year all our troubles will be out of sight.” Almas em tumulto, portanto, dúvidas constantes no nosso íntimo, saudades do passado e muito receio do futuro por ser o eterno desconhecido. O presente é apenas o posto avançado de onde se tenta em vão ver as duas coisas, o que se perdeu e o que não se sabe se se vai conseguir encontrar. No Natal, tudo isto parece ganhar mais força, e os melhores filmes associados a esta quadra são os que o conseguem problematizar em termos dramáticos e levantar-nos dos mortos, dissuadir-nos da apatia e da depressão com revelações prodigiosas. Eis como a simples angústia de uma criança em não querer mudar de casa se torna a coisa mais urgente do mundo, o problema mais importante a resolver mesmo apesar de nós próprios, numa pequena cidade que provavelmente acharíamos a mais pacata e a mais deprimente do mundo se lá fossemos obrigados a viver. E é resolvido com uma canção, introduzida pelo som duma caixinha de música, com um beijo carinhoso e muito discreto atirado ao coração duma criança, por uma mulher olhada e filmada com o amor que se conseguiu encontrar nas circunstâncias mais contrárias e mais adversas. E um problema muito específico e prático transforma-se numa catarse abrangente e colectiva. Se não fossemos tão cínicos e tão pouco crentes, chamar-lhe-íamos um milagre. Como somos, chamamos-lhe apenas cinema.