quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

A Escuta (2022) de Inês Oliveira



por Alexandra Barros

Carlos Zíngaro nasceu em Lisboa, em 1948, e aos 4 anos começou a aprender a tocar violino. Estudou música clássica no Conservatório Nacional de Lisboa e orgão na Escola Superior de Música Sacra. Quis ter como instrumento a guitarra ou o orgão, mas como não tinha possibilidades económicas para adquirir esses instrumentos, “agarrou-se” ao violino. Actualmente, além do violino, tem como instrumento o laptop. Compositor e músico experimental, no seu trajecto encontramos vários géneros musicais e colaborações com músicos prestigiados de diversas áreas: folk-rock psicadélico, free jazz, canção de intervenção, música popular portuguesa, música contemporânea, improvisação livre, música electrónica, música electroacústica, …. Fundou bandas e colectivos de música e performance: Plexus, Associação Conceptual Jazz, Granular. Entre outros músicos nacionais e internacionais (muitos mais internacionais do que nacionais), trabalhou com: Jorge Lima Barreto, José Afonso, Sérgio Godinho, Janita Salomé, Júlio Pereira, Banda do Casaco, Rodrigo Amado, Anthony Braxton, Roscoe Mitchell, Daunik Lazro, Kent Carter, Evan Parker, Fred Frith, Joëlle Léandre, Richard Teitelbaum, Derek Bailey, Otomo Yoshihide, Hans Reichel, Keiji Haino, Dominique Pifarély, Andrea Centazzo, Christian Marclay, Frederic Rzewski, Mark Dresser, John Edwards, Paul Lovens. Compôs música para cinema, teatro e dança. É pintor, ilustrador, autor de banda desenhada. 
 
De acordo com a realizadora: “As características que o distinguem são o gosto pela experimentação, o pioneirismo e a permanência na cena das artes e cultura em Portugal - e pelo mundo - ao longo de mais de 50 anos. É um artista de riscos e de vertigem, [...] comprometido com a busca pela ‘verdade do momento’. Uma vida de entrega total, de pesquisa incessante, de fogachos de plenitude, [...] Viver para o momento, no momento. Tocar esse momento.”[1]
 
Deste artista tão multifacetado e com tanta(s) história(s), Inês Oliveira conseguiu admiravelmente construir um retrato simultaneamente fluido e denso. Talvez porque nunca quis fazer “O” retrato de Zíngaro, mas antes o retrato de Zíngaro de Inês: “O drive do filme é a minha curiosidade e a minha admiração pelo Carlos enquanto mestre; o que lhe ouvimos dizer, o que o vemos fazer, é o que eu quis que se ouvisse, que se visse, pensasse e sentisse.” Inês quis contagiar-nos com o mesmo fascínio que sente por Zíngaro. Afinal, de acordo com Tolstoi, o objectivo da arte é esse contágio: “A arte é uma atividade humana que consiste em alguém transmitir de forma consciente aos outros, por certos sinais exteriores, os sentimentos que experimenta, de modo a outras pessoas serem contagiadas pelos mesmos sentimentos vivendo-os também.”[2]
 
Inês Oliveira compôs um retrato de Zíngaro a partir das reflexões que ele faz acerca da sua vida e da sua música, reflexões sempre ouvidas em voz off. Este “auto-retrato” é acompanhado por imagens que a realizadora captou de Zíngaro “em acção”: a tocar sozinho, rodeado por escuridão ou acompanhado pela própria sombra; concentrado a escutar, para criar música com companheiros de longa data; a pintar e a desenhar, em casa, no estúdio, ou onde calha (num voo de avião, ...). Estas imagens actuais cruzam-se com: muitas fotografias que Zíngaro foi buscar “ao baú”; bilhetes e cartazes de eventos musicais; imagens de arquivo de: entrevistas, espectáculos, concertos, programas de televisão; jornais que nos revelam os seus sucessos internacionais ao mesmo tempo que é ignorado em Portugal. 
 
Inês Oliveira: “Aproximei-me de Carlos Zingaro por instinto. Tinha a impressão de que me iria identificar com ele e assim foi. Este filme é sobre ele, mas é também sobre mim: revejo-me nas suas questões, inquietações, desejos e medos. Quis fazer um filme que contribuísse para o conhecimento do que é a investigação, a experimentação e a criação artística. Um testemunho.” [3]
 
Este retrato de Zíngaro é então assumidamente também um retrato de Inês, um flaubertiano “Carlos Zíngaro sou eu!”. Qualquer tentativa de representar alguém é no fim de contas uma auto-representação, revelou-nos Oscar Wilde: “Todo o retrato que é pintado com sentimento é um retrato do artista e não do modelo. O modelo é apenas o acidente, o pretexto. Não é ele que é revelado pelo pintor; é antes o pintor que, na sua tela colorida, se revela a si próprio.”[4]
 
O Zíngaro de Inês Oliveira é, nas próprias palavras do músico, alguém que tem o violino como uma parte de si próprio, alguém que se pergunta se, ao longo da vida, as opções que tomou, consciente ou inconscientemente, se basearam na vontade de “não ser igual”, de ser estranho: “Há uma grande dose de instinto. Vou por aqui porque eu gosto mais de ir por aqui. Vou por aqui para não ir por onde os outros vão”; “Um furacão educado, a meter para dentro, a elocubrar cá dentro, no meu casulo”. É a esse “dentro” que Inês quis chegar e dar a ver: “Esse foi o efeito que quis criar, de intimidade – quase de sermos todos os que vemos, durante aquela hora de filme, o Carlos Zingaro.”[5]
 
No final do filme, Zíngaro pergunta: “Quando é que nós paramos? Quando é que nós decidimos que aquele objecto sonoro está acabado? E passar para o próximo. Quando é que nós decidimos que um livro está acabado? Ou que uma escultura ou uma pintura está acabada? Não nos libertamos. Basicamente, o meu cavalo de batalha nestas coisas das improvisações é a escuta, o saber ouvir.” PING! 
 
Inês: “A escuta é a condição base de um improvisador. É também a minha condição como cineasta e de espectadora entre espectadores. É a condição necessária para uma sociedade mais humanista.”[6] PONG!  

Apesar da imensidão deste filme, e das tantas portas por onde apetece entrar, não tenho de me debater com o dilema “onde parar?”. Sou forçada a acabar por razões de ordem física: o espaço disponível numa folha A4. Agora, faça-se escuro para ver e faça-se silêncio para ouvir A Escuta.

[1] ardefilmes.org, sinopse oficial do filme.
[2] O que é a Arte?, Lev Tolstoi.
[3] rimasebatidas.pt, conversa com Rui Eduardo Paes.
[4] O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde.
[5] rimasebatidas.pt, conversa com Rui Eduardo Paes.
[6] ardefilmes.org, sinopse oficial do filme.



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