quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Mudar de Vida - José Mário Branco, vida e obra (2014) de Nelson Guerreiro e Pedro Fidalgo



por António Cruz Mendes

Diz-nos Arthur Danto que uma das características definidoras de uma obra de arte é o seu aboutness. Uma obra de arte é sempre “sobre alguma coisa”, reflectindo nesse olhar sobre a realidade a visão do mundo do seu autor. Algo que não reduz à escolha de um “tema”, mas se materializa sobretudo nas características de um “estilo”. Além disso, o artista usa de todos os artifícios retóricos próprios do seu meio, a escrita, as imagens, os sons, que se encontram ao seu dispor para levar o seu receptor a identificar-se com ela. 

Sendo assim, em que reside o valor de uma obra de arte? Na minha opinião, ele será tanto maior quanto maior for o valor que a sua experienciação acrescentar à nossa própria experiência de vida. A arte tem uma função de conhecimento. Uma obra de arte que repete lugares comuns poderá, por isso mesmo, ser “popular”, contudo aquelas que a história retém são as que nos ensinaram algo de novo sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos e que, portanto, nos transformaram como pessoas. Não somos os mesmos depois de visitarmos o universo pessoal de um grande artista, tal como ele se plasma na sua obra. 

Estas ideias, que me parecem válidas para a literatura, para a pintura ou para o cinema, sê-lo-ão também para a música? 

Os chamados “cantautores” estavam firmemente convencidos das potencialidades das suas canções e colocaram-nas sem reservas ao serviço das causas políticas e sociais em que se empenharam, ainda que correndo, por vezes, o risco da simplificação, de uma banalização panfletária da sua mensagem. 

José Mário Branco teve um papel de grande relevo neste movimento que teve um assinalável impacto sócio-cultural nos anos 70 do século passado, quando se viveram os últimos anos do fascismo e da guerra colonial e aqueles que se seguiram ao 25 de Abril. Teve-o como compositor, como cantor, como produtor, como dinamizador de colectivos vários que, tanto através da música como do teatro, tentaram despertar consciências e mobilizar pessoas. 

Mudar de Vida não é propriamente uma biografia pessoal. Dá-nos a conhecer, é certo, os passos mais importantes da sua vida: o despertar da sua consciência política, a breve passagem pela Universidade de Coimbra, a prisão, a fuga para Paris, a descoberta da música, o convívio com a comunidade emigrante, onde se encontravam os que fugiram à miséria e os que fugiram à guerra e, depois, o 25 de Abril e o regresso a Portugal essas imensas esperanças despertadas pela “revolução dos cravos” e, finalmente, o 25 de Novembro, a normalização democrática e o fim de um país sonhado por si e pelos seus companheiros de luta. Porém, o filme centra-se sobretudo na forma como nele se articularam a acção política e a intervenção cultural e fá-lo através das histórias que ele próprio no conta, dos depoimentos de amigos e companheiros, das filmagens de concertos e espectáculos, e dos encontros e manifestações de rua que nos oferecem o contexto e a matéria de tudo daquilo que estava em causa. Apresenta-se, então, como o documento histórico fundamental para compreendermos uma época para a qual já olhamos como um passado. 

Terão ainda actualidade, como nos diz a "sinopse oficial” que reproduzimos aqui, essas manifestações de combate e de esperança, de raiva e de revolta, que encontramos na obra de José Mário Branco? A história não se faz através de uma sucessão de compartimentos estanques. As fontes musicais que o inspiraram encontram-se na tradição popular e na obra de Lopes-Graça, a certa altura, ele próprio descobriu o fado e, mais tarde, surgiram jovens que viram no FMI, esse catártico grito de desespero, um antepassado do rap… Além disso, a guerra, a pobreza e as injustiças que a sua obra denuncia, continuam presentes e a aspiração dos homens a um mundo melhor é eterna. As futuras gerações dirão se a sua obra e o seu exemplo continuarão ou não a ser inspiradores. 

Uma última palavra para a relação de José Mário Branco com o cinema, iniciada em 1978 com A Confederação (1978), de Luís Galvão Teles, filme com uma banda sonora assinada por ele próprio, por Sérgio Godinho e por Fausto, até Prazer Camaradas (2019), de José Filipe Costa, onde se ouve Gare de Austerlitz, do álbum “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. 

Mais de vinte filmes contaram com a participação de José Mário Branco, como actor, como voz off e como compositor e cantor. Destacamos aqui a sua participação, como autor da música, em O Rio do Ouro (1998), de Paulo Rocha, e em O Movimento das Coisas (1986), de Manuela Serra (estes já projectados pelo nosso cineclube), A Portuguesa (2018), de Rita Azevedo Gomes, e como actor em Ninguém duas vezes (1984) e Coitado do Jorge (1992), de Jorge Silva Melo. 

“Sou português, pequeno-burguês de origem, filho de professores primários. Artista de variedades, compositor popular, aprendiz de feiticeiro. Faltam-me dentes. Sou o Zé Mário Branco”, diz-nos ele logo no princípio do filme. As imagens e as palavras que vemos e ouvimos em Mudar de Vida completam esse retrato e mostram-nos, de corpo inteiro, um homem comprometido com o seu tempo, que viu na música, no teatro e no cinema, os veículos possíveis das suas recusas e das suas esperanças.



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