quarta-feira, 16 de março de 2022

Benedetta (2021) de Paul Verhoeven



por André Miranda

Foram quarenta anos a percorrer o deserto, passando fome e sede, queimando a sola dos pés na agrura quente da areia. Quarenta anos até alcançar Israel. Moisés à frente, desde o Egipto, atravessando mares, combatendo povos inimigos. Até o dia em que foi avistado o rio Jordão. Do lado de lá, a Terra Prometida. O alívio e esperança que deve ter enchido todos aqueles corações. O povo escolhido cumpria o destino, assim como Moisés cumpriria o seu. Deus tomou forma e anunciou o que Moisés já sabia: que só com o olhar tocaria Israel, aguardando-lhe a morte do lado de cá do Jordão. 
 
A travessia de Benedetta é mais simples. Acompanhada pela família, viaja ao convento de Pescia, onde se devotará a uma vida casta de oração. Pelo caminho, a caravana é interrompida por um bando de homens de índoles pontiagudas. Vorazes, ameaçam e exigem ouro a troco de nada. Excitam medos nas pobres almas. Exceto na alma de Benedetta, que avança sem temor e, com ajuda divina, comanda um pássaro a defecar no olho do líder dos gatunos. Este desbraga-se a rir, encantado com tão curioso feito. Abandona os melífluos intentos. Deus vence mais uma vez. 
 
É Benedetta já adulta, quando entra no convento Bartolomea. Esta, noviça, não conhece os cantos à casa e precisa da ajuda da experiente Benedetta para encontrar a latrina. As duas aliviam-se em conjunto e, pouco depois, trocam um beijo. Fruto ou não da culpa e da avidez reprimida, Benedetta é acometida de visões. Jesus chega-lhe de várias formas e clama-a esposa. Este não lhe é casamento muito favorável, pois a violência das aparições e exigências é tal que a lança sobre a cama, doente. As mãos e os pés abrem-se como se a houvessem crucificado. Só pode ser milagre. Quem não vai na cantiga é a madre superiora. É verdade que as chagas existem e vertem continuamente, mas faltam as marcas na testa da coroa de espinhos. Não seja por isso, poucos momentos depois as feridas aparecem, não se sabe se por intercessão divina ou hábil mão terrena. 

A madre é deposta. É por demais evidente que a escolhida do céu é Benedetta. Eleita líder do convento, depressa extingue o calor há tanto contido. Deleita-se com Bartolomea em deflagrações carnais. Até figura santíssima, depois de lhe ser dada forma apropriada, colabora na satisfação do desejo. No entanto, o paraíso é de pouca dura. A ex-madre, ressentida pela usurpação, encontra-se com o núncio, convence-o a viajar até Pescia e impor ordem em convento tão transviado. Mas é tarde demais. A peste ronda. Os gânglios incham de pestilência e a morte canta. A vida purifica-se em estertor de chama.

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