quarta-feira, 2 de março de 2022

Le sel des larmes (2020) de Philippe Garrel



por João Palhares

Philippe Garrel nasceu em 1948 na comuna de Boulogne-Billancourt. É filho de Maurice Garrel, actor secundário bastante requisitado durante os anos 60, em que trabalhou com Jacques Rozier, René Clément, François Truffaut, Christian-Jaque, entre outros, antes de entrar na primeira longa-metragem do jovem Philippe, Marie pour mémoire, em 1967. Admirador assumido de Jean-Luc Godard, Garrel filho junta-se ao grupo Zanzibar na Primavera de 1968, para o qual realiza Le Révélateur e Le Lit de la Vierge (exibido pelo cineclube em Maio de 2018 numa sessão em parceria com a Civitas Braga, pela ocasião dos cinquenta anos do Maio de ’68). 
 
Num texto fabuloso em que descreve também os seus anos de juventude, “O Cinema do FIlho”, escrito para o catálogo da Cinemateca dedicado ao cineasta francês, Jorge Silva Melo consegue dar uma ideia do que foi conhecer o Garrel desses primeiros anos, farol desgarrado e desregrado para uma geração que se queria soltar duma ditadura, distanciar-se dos pais e das instituições, ver mundo e conhecer os outros, as outras, cantar, fumar, dançar, filmar sem som e sem filtros, fazer amor, tocar, beber, formar uma banda, recitar poesia, dar mundos ao mundo sem um vintém, fazer coisas para não estar parado, mudar o mundo e as consciências através da arte, não separar a arte da vida, sonhar, conspirar em cafés, e “poder um dia ir filmar ao México, ao Egipto, na Itália, onde nos levasse o vento, fazendo explodir as formas como rebentam, belas, hugolianas, as ondas do mar, anos a fio, sem plano de trabalho, sem obrigações financeiras, vivendo à boleia da vida como os santos de Assis, em inocência comunitária.”[1]
 
Levado também pelo vento, nos anos 80 Garrel vira-se para os guiões e na viragem dos noventa para o novo século passa a filmar maioritariamente a preto e branco, estética por que é hoje geralmente conhecido apesar de ter feito mais que uma mão cheia de filmes a cores (Anémone, 1968, La cicatrice intérieur, 1972, Le berceau de cristal, 1976, o seu segmento de Paris vu par… 20 ans après, 1984, Les ministères de l’art, 1989, J’entends plus la guitare, 1991, O Coração Fantasma, 1996, Le vent de la nuit, 1999, e Un été brûlant, 2011). Descrevendo um pouco essas transformações e esses desvios, em 2017, o realizador francês confessou que “eu acho que se pode falhar ou ser bem sucedido em qualquer altura da nossa vida, e um artista nunca melhora, é apenas fiel a si próprio e à sua identidade como artista—e claro que passa por diferentes fases na vida. Desde que comecei a fazer filmes, que gosto de alguns e doutros não gosto tanto, e isso não mudou em 50 anos, sabes—no princípio, era igual ao que é hoje. Acho que nenhuma mudança depende de uma época, ou dos tempos que mudam. 
 
“O que mudei foi a minha maneira de fazer filmes. Durante 15 anos, os meus filmes nunca eram escritos, não tinha argumento nenhum. Depois comecei a escrever filmes, percebi que as minhas mudanças dependiam—as mudanças que ocorreram na minha vida, como um pintor—dependiam das mulheres que amei e com quem vivi. E foi isso que influenciou o meu estilo. Portanto depende mesmo muito disso, e eu sei que passei por tempos e períodos em que uma mulher me estimulou a mudar o meu estilo e a fazer algo diferente. É exactamente como um pintor, sabes, quando um pintor passa por um certo período e o que muda é a atitude dele, não a sua arte. De certa forma, ele pode mudar o seu estilo, e foi assim que eu sobrevivi no ambiente do cinema em filmes populares ou filmes mainstream.”[2]
 
Nos últimos anos, houve novo desvio. Garrel decide deixar de filmar a burguesia, “porque se tornara insuportável a exposição dos seus valores e da sua linguagem. Não nos apercebíamos disso quando víamos um Visconti, que falava da aristocracia. Mas achei que, nesta época de crise mundial, se tornava obsceno. No cinema, se o padeiro é enganado pela mulher, temos pena dele; se for o patrão de uma fábrica, já não nos importamos. É um estado a que nunca voltarei. A ilustração da burguesia no cinema tornou-se desagradável.”[3] Assim, em O Sal das Lágrimas, Luc é um carpinteiro que vai a Paris para se tornar marceneiro. Vive com o pai em Linselles e tem de apanhar comboios e autocarros, fica em casa de um primo antes de ser aceite na École Boulle, conceituada faculdade francesa de belas artes, artesanato e artes aplicadas. O pai diz-lhe que o quarto é caro e ele parece sempre perdido na metrópole, como quando pede as indicações a Djemila, e permanentemente sem privacidade, como na sua tentativa de intimidade em casa do primo ou no esquema de co-habitação e conjugalidade que assume com Betsy. 
 
Perto da meia hora final de O Sal das Lágrimas, somos avisados pelo narrador de que Luc vai encontrar uma mulher à sua medida. Vemos Alice, de quem ainda não sabemos o nome, em segundo plano, mas quando o amigo dele, Jean-René, vai falar com ela e a convida para sair, ficamos com algumas dúvidas se será essa a mulher. Luc e Jean-René vão ter com Alice e uma amiga, Betsy, que será o par de Luc nessa saída à noite. Pode ser ela, mas ainda vão a um clube e encontram uma colega de escola de Luc, Lucie. Talvez seja ela. Só que já a conhecia e ela aparece num plano aproximado com outro colega de curso, Pablo, a olhar para a pista de dança e o que vêem é a resposta às nossas perguntas: Betsy, ao som dos Téléphone, é acompanhada pela câmara em todos os seus movimentos, enquanto troca de parceiros e procura os estímulos de que precisa sem prestar contas a ninguém, regressa o Maio de ’68, a libertação, o punk, o rock, a revisão dos valores vigentes que no fim das contas vai questionar se não será possível aquela vida aberta a três que Ernst Lubitsch e Jean Renoir, por exemplo, tanto romantizaram nos seus filmes (acima de todos, o fabuloso último segmento de Le petit théâtre de Jean Renoir) e que erradicariam os encornados e as encornadas deste mundo. Luc não o aceita, o que é surpreendente tendo em conta como tratou as mulheres que foi conhecendo ao longo do filme. O ser humano é fodido.

[1] in «Philippe Garrel - uma alta solidão», Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, 2003.
[2] in «Right and True: An Interview with Philippe Garrel», 24 de Abril de 2018, Notebook, MUBI.
[3] in «Philippe Garrel: “A monogamia triunfou mas não funciona”», Jornal de Notícias, 12 de Outubro de 2020.

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