Quem são os nossos amigos quando verdadeiramente importa? Quantos são capazes de derrubar as muralhas da aparência quando esta se tenta confundir com a realidade? Movidos por uma crença e por instintos que às vezes têm de desafiar a lógica e a razão? Quando as ondas parecem tender numa certa direcção, quem é capaz de remar contra a maré? Misturando a arte e a vida, e suspeitando sempre dos consensos e dos dogmas, quem é capaz de levar o José Régio à letra e encarnar o terrível “Não sei por onde vou, não sei para onde vou. Sei que não vou por aí.”? Quando pode custar muito caro e não há buracos onde se possa esconder?
Há centenas de variações sobre o tema dos “falsos culpados” na história do cinema, das dramatizações de Georges Méliès do “caso Dreyfus” ao Caso de Richard Jewell de Clint Eastwood, passando pelas caças-às-bruxas de Dreyer e de Chaplin e pelas perseguições aos inocentes de Alfred Hitchcock, portanto em A Caça de Thomas Vinterberg não estamos em terreno desconhecido. O realizador dinamarquês surpreende, no entanto, ao focar-se nas relações feitas e desfeitas, nas confusões entre o amor e o ódio e a inocência e a malícia em situações extremas. As personagens de Lucas e Theo, por exemplo, e apesar de ficarem quase imediatamente em campos opostos, continuam manifestamente a gostar um do outro e sem saber o que fazer.
O Lucas de Mads Mikkelsen é acusado de “fazer coisas que só os adultos fazem” com uma criança, Kiara, filha do seu melhor amigo, que só o espectador sabe estar a mentir e ter criado uma fantasia amoral através dos vídeos pornográficos que o irmão e um amigo lhe mostraram perto do início do filme. Assim, vemos um grupo de gente próxima a Lucas, entre melhor amigo, namorada e colegas de escola, a comportar-se de forma progressivamente agressiva para com um inocente e ficamos progressivamente exasperados com os resultados práticos: a comunidade escorraça-o da escola onde trabalha, o filho vê-se obrigado a fugir de casa da mãe para estar com ele e são ambos proibidos de fazer compras no supermercado local. Matam-lhe o cão.
Quando as tensões atingem o pico, mesmo depois de Lucas ser ilibado, há uma confrontação durante a missa de Natal. Lucas entra sozinho depois da cerimónia começar e vai-se sentar na terceira fila. Já tinha sido agredido no supermercado por querer comprar comida para a sua consoada solitária. A mulher que estava lá sentada, levanta-se, e procura outro lugar. Lucas vira-se e olha de frente para Theo e para a esposa, que desviam o olhar. Ele tinha-lhe dito que sabia quando Lucas estava a mentir olhando-o nos olhos, então este levanta-se e vai ter com eles. Pede-lhe para o olhar de frente, encara-o e agride-o. Theo leva-lhe comida a casa, nessa noite.
E então, o cinema: parecendo estar tudo bem, durante uma cerimónia de passagem para a idade adulta do filho de Lucas, Marcus, o olhar perdido de Mads Mikkelsen nessa normalidade aparente, as hesitações nos seus gestos apreendidas de perto pela câmara de Vinterberg, os corpos hirtos e tensos dos outros caçadores, separados da assistência na cerimónia, avistados em último plano, os padrões e os frisos no chão que separam Lucas de Klara, a hesitação em atravessá-los, a dúvida e a incerteza a pairar timidamente no ambiente de festa. Passa-se para a floresta e há um tiro, vê-se um vulto contra a luz do sol. A máxima relevância da proximidade ou afastamento da câmara, da representação visual posta em jogo com os dados e as implicações narrativas, o elogio supremo à inteligência do espectador. Obrigado, Thomas Vinterberg.
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