sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Jagten (2012) de Thomas Vinterberg



por João Palhares

Quem são os nossos amigos quando verdadeiramente importa? Quantos são capazes de derrubar as muralhas da aparência quando esta se tenta confundir com a realidade? Movidos por uma crença e por instintos que às vezes têm de desafiar a lógica e a razão? Quando as ondas parecem tender numa certa direcção, quem é capaz de remar contra a maré? Misturando a arte e a vida, e suspeitando sempre dos consensos e dos dogmas, quem é capaz de levar o José Régio à letra e encarnar o terrível “Não sei por onde vou, não sei para onde vou. Sei que não vou por aí.”? Quando pode custar muito caro e não há buracos onde se possa esconder? 
 
Há centenas de variações sobre o tema dos “falsos culpados” na história do cinema, das dramatizações de Georges Méliès do “caso Dreyfus” ao Caso de Richard Jewell de Clint Eastwood, passando pelas caças-às-bruxas de Dreyer e de Chaplin e pelas perseguições aos inocentes de Alfred Hitchcock, portanto em A Caça de Thomas Vinterberg não estamos em terreno desconhecido. O realizador dinamarquês surpreende, no entanto, ao focar-se nas relações feitas e desfeitas, nas confusões entre o amor e o ódio e a inocência e a malícia em situações extremas. As personagens de Lucas e Theo, por exemplo, e apesar de ficarem quase imediatamente em campos opostos, continuam manifestamente a gostar um do outro e sem saber o que fazer. 
 
O Lucas de Mads Mikkelsen é acusado de “fazer coisas que só os adultos fazem” com uma criança, Kiara, filha do seu melhor amigo, que só o espectador sabe estar a mentir e ter criado uma fantasia amoral através dos vídeos pornográficos que o irmão e um amigo lhe mostraram perto do início do filme. Assim, vemos um grupo de gente próxima a Lucas, entre melhor amigo, namorada e colegas de escola, a comportar-se de forma progressivamente agressiva para com um inocente e ficamos progressivamente exasperados com os resultados práticos: a comunidade escorraça-o da escola onde trabalha, o filho vê-se obrigado a fugir de casa da mãe para estar com ele e são ambos proibidos de fazer compras no supermercado local. Matam-lhe o cão. Quando as tensões atingem o pico, mesmo depois de Lucas ser ilibado, há uma confrontação durante a missa de Natal. Lucas entra sozinho depois da cerimónia começar e vai-se sentar na terceira fila. Já tinha sido agredido no supermercado por querer comprar comida para a sua consoada solitária. A mulher que estava lá sentada, levanta-se, e procura outro lugar. Lucas vira-se e olha de frente para Theo e para a esposa, que desviam o olhar. Ele tinha-lhe dito que sabia quando Lucas estava a mentir olhando-o nos olhos, então este levanta-se e vai ter com eles. Pede-lhe para o olhar de frente, encara-o e agride-o. Theo leva-lhe comida a casa, nessa noite. 
 
E então, o cinema: parecendo estar tudo bem, durante uma cerimónia de passagem para a idade adulta do filho de Lucas, Marcus, o olhar perdido de Mads Mikkelsen nessa normalidade aparente, as hesitações nos seus gestos apreendidas de perto pela câmara de Vinterberg, os corpos hirtos e tensos dos outros caçadores, separados da assistência na cerimónia, avistados em último plano, os padrões e os frisos no chão que separam Lucas de Klara, a hesitação em atravessá-los, a dúvida e a incerteza a pairar timidamente no ambiente de festa. Passa-se para a floresta e há um tiro, vê-se um vulto contra a luz do sol. A máxima relevância da proximidade ou afastamento da câmara, da representação visual posta em jogo com os dados e as implicações narrativas, o elogio supremo à inteligência do espectador. Obrigado, Thomas Vinterberg.

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