quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

La vie de bohème (1992) de Aki Kaurismäki



por Alexandra Barros

O filme A Vida de Boémia é baseado no livro Scènes de la vie bohème de Henry Murger, no qual a ópera La Bohème, de Puccini, também é inspirada. O livro reúne um conjunto de histórias sobre artistas que, por paixão e dedicação à arte, renunciam ao bem-estar material e aceitam convictamente a situação de permanente instabilidade económica. Esta foi a obra que popularizou o mito do artista pobre e faminto e romantizou o estilo de vida boémio. Devido à nobreza de carácter dos que tudo sacrificam pela arte, esse estilo de vida é considerado superior à confortável existência burguesa ou à luxuosa vida dos ricos. 

No filme assistimos aos altos e baixos - muito mais baixos que altos - da vida, em Paris, de três artistas sem vislumbres de sucesso. Marcel Marx é um escritor francês que recusa reduzir a sua peça A influência do azul na arte, com vinte e um actos, a um formato comercialmente viável. Rodolfo é um pintor albanês, que emigrou clandestinamente para França. Schaunard é um compositor vanguardista irlandês. A sua última composição termina com as teclas do piano marteladas com a sua própria cabeça. A obsessão pela arte aproximou-os e entre eles desenvolveu-se uma forte amizade. 

Encontram-se frequentemente em situações desesperadas, sem dinheiro para comer ou um tecto que os abrigue. Apesar da luta permanente pela sobrevivência, são gentis, afectuosos e solidários. Partilham os recursos que têm e ajudam-se mutuamente. 

A cena da truta bicéfala, quando Marcel e Rodolfo se encontram pela primeira vez, contém muita da essência do filme: os esquemas para garantir a sobrevivência; a bizarria; a generosidade, humanidade e erudição das personagens. Sentados lado a lado, começam a conversar porque Rodolfo estranha a forma como Marcel pede a sua refeição. Marcel explica a Rodolfo que encomenda duas meias trutas porque dessa forma ganha mais um quarto de truta do que se pedir uma truta inteira. Quando servem a última truta a Rodolfo e Marcel não vê o seu pedido atendido, Rodolfo insiste em partilhar a sua. À recusa inicial de Marcel, que não quer privá-lo da sua refeição, responde: “Vai-me tirar o prazer de expressar a minha boa vontade?”. Mais ainda, tenciona reservar a cabeça para si pois “a cabeça é a parte mais nobre do homem, mas a parte mais desagradável da truta”. Acabam por dividir irmãmente a truta, pois esta tem duas cabeças. 

Apesar da dureza do seu modo de vida - pobreza, instabilidade financeira, falta de reconhecimento artístico - os três amigos acreditam que a entrega incondicional à arte, mesmo que incompreendida e ignorada, justifica todos os sacrifícios e que a vida que se lhes adequa é e sempre será a vida de boémia.

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