por Joaquim Simões
Amado seja aquele que se senta. Amado seja aquele que prende o dedo numa porta. Amado seja aquele que calça um sapato furado à chuva.
Estas são algumas das citações do poeta peruviano César Vallejo espalhadas ao longo de Canções do Segundo Andar, um filme que pinta o quadro surreal de uma sociedade prestes a colapsar sobre o peso dos seus próprios valores na viragem do milénio. Outrora um grande realizador sueco serviu-se da peste negra como catalisador de uma busca angustiante por significado e fé numa das obras-primas do cinema escandinavo; quase meio século depois as mesmas questões existenciais persistem, surgindo como consequência do absurdo da vida moderna levado ao extremo: uma fila de trânsito infinita que não se mexe, uma procissão de corretores da bolsa que se autoflagelam porque já não há emprego, uma reunião executiva onde é passada uma bola de cristal.
A dada altura do filme um homem está literalmente preso a uma porta que se fechou sobre a sua mão. Uma multidão junta-se à sua volta enquanto o homem solta gemidos patéticos; ninguém tem pressa para ajudar e alguns dos espectadores mostram-se até indignados pelo espetáculo. Noutra cena, um mágico começa a serrar um homem a meio, apercebendo-se pelos fracos gemidos do sujeito que de facto está mesmo a serrá-lo (mesmo assim ainda abana a serra para confirmar). É de cenas assim, lentas e silenciosas, apresentadas em quadros estáticos e profundos, onde tudo é pálido e os humanos têm uma tez cadavérica, que se desenvolve esta comédia singularmente macabra de Roy Andersson.
O cineasta, que iniciou o seu percurso no final da década de sessenta, obteve o seu primeiro grande sucesso – e único durante três décadas – com o filme de 1970, História de Amor (conhecido internacionalmente como História de Amor Sueca), um filme de um realismo que em nada se assemelha ao estilo pelo qual o realizador veio a ser aclamado no século seguinte. Depois do falhanço comercial e crítico do seu segundo filme, em 1975, Roy Andersson dedicou-se à carreira comercial, trabalhando como realizador de anúncios publicitários; foi durante este período que desenvolveu uma estética particular de anúncios imediatamente reconhecíveis: um tipo de sketch que decorre num único plano meticulosamente concebido, sem cortes, normalmente com ações a decorrer em vários planos, e um sentido de humor inconfundível - anúncios que valem a pena ser vistos, tendo sido descritos pelo próprio Ingmar Bergman (o grande realizador sueco) como os melhores do mundo.
É precisamente nesta veia que surge o primeiro filme de Andersson após 25 anos – um filme para o qual, propositadamente ou não, o realizador esteve a praticar durante esse longo intervalo. Mas se até então Andersson aliou o seu talento ao sistema capitalista que de certo modo o alimentava, concebendo anúncios para seguradoras, empresas telefónicas, marcas de cerveja, etc., em Canções do Segundo Andar é precisamente para criticar e expor o absurdo da sociedade como consequência de tal sistema que Andersson utiliza as mesmas técnicas que aprimorou ao seu serviço.
Canções do Segundo Andar é o primeiro de uma trilogia de filmes temática e esteticamente relacionados, onde a procura de significado na vida urbana tem um papel central, sendo apresentada através de cenas isoladas e com um distanciamento que nos faz olhar para a nossa própria espécie como animais na vitrina de um museu.
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