quarta-feira, 1 de junho de 2022

Pasolini (2014) de Abel Ferrara



por Alexandra Barros

Pasolini morreu aos 53 anos, brutalmente espancado e esmagado com o seu próprio carro. A morte de Pasolini está envolta em mistério e parece “escrita” segundo o cânone pasoliniano, envolvendo sofrimento, sexualidade, violência, escândalo, política, teorias da conspiração. 
 
Estes temas - temas de eleição também na filmografia de Abel Ferrara - dominam este filme, que acompanha Pasolini nos seus últimos dias. 
 
A narrativa é fragmentária, na tentativa de abranger todos os Pasolinis: o cineasta, o intelectual, o comunista, o homossexual assumido, o romancista, o poeta, o ensaísta, o filósofo, … Ora seguimos Pasolini no seu dia-a-dia ora estamos dentro da sua cabeça, ouvindo os seus pensamentos e assistindo às imagens e histórias criadas pela sua imaginação. Os momentos reais incluem: intimidade familiar na casa materna, entrevistas, storyboards, refeições com a mãe e amigos, escrita, um passeio nocturno no seu Alfa Romeo para procurar companhia e sexo, a morte brutal. Os momentos imaginados são pedaços de projectos inacabados: o romance e o filme em que Pasolini estava a trabalhar na altura em que morreu. 
 
A interpretação de Willem Dafoe, que faz parte da família de “actores de Ferrara”[1], e cujo fascinante rosto anguloso e sulcado por rugas tem grandes semelhanças com o de Pasolini, é (quase) unanimemente elogiada, mas o filme nem tanto. A ambição de condensar em hora e meia o pensamento político, religioso e filosófico de Pasolini, o seu processo criativo, a sua vida afectiva, … - enfim, a densidade do homem e da obra - é, de forma geral, considerada falhada. Há porém quem defenda que a sobriedade com que Ferrara tentou mostrar a vida de uma das personalidades mais chocantes do seu tempo é essencialmente confrontacional e, por inesperada, a abordagem mais arriscada. Por outro lado, a morte de Pasolini foi filmada de forma crua e violenta, como os próprios filmes de Pasolini e de Ferrara. 
 
Há muitas outras ressonâncias entre estas duas personalidades “malditas”: nos escândalos causados pelos seus estilos de vida e pelas suas obras; no gosto comum pelas classes populares e desfavorecidas, pelo submundo, pela marginalidade, pela provocação, pelas questões morais. Embora anticlericais, ambos foram fortemente influenciados pela doutrina cristã e a procura e reflexão sobre o sagrado estão fortemente presentes nas obras de um e de outro. O pior e o melhor da humanidade também. O apelo e a necessidade de experiências intensas causaram a ambos muitos tormentos e angústias pessoais. Neles, a vida (a real e a dos filmes) abarca todos os sofrimentos para poder abarcar todos os êxtases. 
 
Pasolini sujeitou-se à “crucificação” social e expôs-se aos mais diversos riscos, por desafiar a moral convencional e por dar primazia aos ímpetos primais, ao desejo, ao prazer, à liberdade. Incompreendido e inconformado, a sua existência e os valores que defendeu deram primazia a um sentido: o da consagração da vida.

[1] Willem Dafoe protagonizou 6 filmes de Abel Ferrara: New Rose Hotel, Go Go Tales, 4:44 – Last Day on Earth, Pasolini, Tomasso e Siberia. Em Tomasso, Dafoe é mesmo uma espécie de alter-ego de Abel Ferrara.



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