por Joaquim Simões
Durante o genérico inicial e “pessoal” de La Poison, o autor diz à atriz Pauline Carton que o cenário da cela da prisão onde se encontram foi perfeitamente reconstruído a partir das suas recordações. O realizador precede assim o filme com uma alusão ao facto infeliz do seu encarceramento de sessenta dias após a libertação de França, tendo sido injustamente condenado como colaborador Nazi. A experiência deixou um sabor amargo e acabou por inspirar o filme cáustico, cínico e hilariante que exibimos hoje.
Paul Braconnier, horticultor, detesta a sua mulher. Blandine, mulher de Paul, abomina o marido. Toda a vila sabe, ou passa a saber, porque Paul não consegue conter a sua amargura e qualquer ouvido simpatético serve para descarregar as mágoas. Oxalá pudesse matá-la... como quem diz, claro. Ao jantar liga-se o rádio para evitar a conversa ou, mais provavelmente, o silêncio rancoroso. Mas os olhares e os gestos nada dissimulam, e o rancor é tanto mais presente nas pequenas atenções a que a etiqueta obriga: cortar uma fatia de pão para a mulher que se odeia, ou encher um copo de vinho ao marido que se despreza, tudo isto enquanto na rádio passa uma canção sobre pombos e amor.
Eventualmente, seguindo o conselho astutamente roubado a um advogado de defesa criminal, Paul lá ganha ânimo e mata a mulher, tomando todas as medidas para ser ilibado em tribunal. Tudo corre como planeado e a cereja no topo do bolo é que a mulher de Paul tenta envenená-lo mesmo antes deste a esfaquear. Bendita sorte! O motivo torna-se assim de repente o melhor possível: autodefesa.
As coisas ficam ainda melhores para Paul já que, para além do homicídio lhe ter corrido muitíssimo bem, a vila toda está do seu lado porque o escândalo gerado impulsionou imenso o comércio e o turismo, a cozinha do crime virou museu e até puseram na estrada nacional uma placa com uma setinha a indicar a vila! É, portanto, como um convidado de honra, e não um reles suspeito de homicídio, que Paul aguarda o julgamento na sua já mencionada cela.
Finalmente em tribunal, um novo Paul, inteligente, eloquente e sem qualquer receio - indignado até - subverte engenhosamente os papéis de julgado e juiz, declarando que, se não tivesse matado a sua mulher, teria ele sido assassinado e a mulher seria na mesma executada por homicídio. Portanto ele não fez mais do que salvar uma vida, antecipando-se à lei que nada teria feito: o tribunal, portanto, é que devia estar agradecido. Escusado será dizer, até porque já foi dito, que Paul escapa e tudo acaba bem.
Hilariante como redução ao absurdo, La Poison é um filme que critica com acidez aspetos sociais relevantes e atuais: a hipocrisia moral face à necessidade económica, o mediatismo do crime e da morte, a incompetência do sistema de justiça e o cinismo dos que constroem a sua carreira à custa dela.
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