quarta-feira, 8 de junho de 2022

Boudu sauvé des eaux (1932) de Jean Renoir



por João Palhares

Michel François Joseph Simon é um mito, nascido como a sétima arte no ano de 1895. Porque “um mal nunca vem só,” terá dito ele uma vez (citação que queremos apócrifa, como deve ser sempre quando se quer disseminar as lendas). Boudu sauvé des eaux, segundo Jean Renoir[1], “é Michel Simon. Isso quer dizer que ele é um dos maiores actores vivos e um dos maiores da história do teatro e do cinema. Boudu é uma homenagem a Michel Simon. Além disso, foi Michel Simon quem sugeriu que eu fizesse o Boudu. Assim que terminámos La chienne, começámos a procurar outra coisa para fazermos juntos. Tínhamos muitas ideias, mas não conseguimos avançar com nada. E um dia ele disse-me: “Devíamos fazer o Boudu.” No início eu não entendia. Li a peça, que admirava muito, é uma bela peça. Mas não via como é que esta peça se poderia tornar num filme. Até que um dia me pareceu óbvio, tomou-me de assalto. Vi Michel Simon vestido como um vagabundo.” 
 
Século vinte, século do cinema. Em Itália, Alessandro Blasetti sonhava com uma escola que formasse profissionais de cinema, e dirige um curso de interpretação em que os alunos visitam hospitais e asilos de loucos, conhecendo pessoas em situações extremas para praticar um estilo de interpretação estritamente realista. Em Inglaterra e em França, Charles Chaplin e Michel Simon percorrem as ruas da amargura e passam as maiores privações entre orfanatos e trabalhos precários até descobrirem finalmente o teatro e a comédia. E passam a representar para o mundo e pelo mundo tudo o que viram, tudo o que viveram, tudo o que foram. E o mundo que ia tentando fintar o trabalho e o dinheiro com alegria de vida improvisada para os dias, reconheceu-se neles. Nesses barbudos, vagabundos e excêntricos que diziam ser possível trocar a vida simples, ordeira e correcta por uma existência livre, electiva e descomprometida sem perder a sanidade. Poder entrar num comboio, gritar “boa tarde”, e dizer “está tudo a dormir” quando ninguém responde, falar em português com estrangeiros e ser teimoso o suficiente para encontrar uma via de comunicação, sorrir e conversar apenas com gestos largos e improvisados como se fosse a coisa mais natural do mundo. 
 
Boudu talvez seja isto, escrito e filmado pelo cineasta que aprendeu no exército que no final das contas não há seres humanos totalmente bons nem totalmente maus, que os contrários são apenas duas faces da mesma moeda e que não se ganha nada em julgar quem quer que seja. Até se aprende mais se se não o fizer. Quase sempre a sociedade e as suas convenções e rituais nos desiludem, são elas que nos tornam diferentes aos olhos uns dos outros, mas são muito poucos os que as conseguem mandar às urtigas. “Meia-dúzia de líricos, pá.” E surge-nos um Michel Simon sufocado por um apartamento e por uma câmara, solto na natureza e captado como um leão que finalmente respira depois de descobrir outras utilidades para escadas e batentes, livros e mesas, negócios e casamentos. Som directo, câmara ao sabor do vento ou dos devaneios selvagens de uma alma livre. Os anos trinta, outra vez, a adaptação a uma linguagem nova e as dificuldades e os percalços todos imbuídos na narrativa. O perigo de atravessar uma rua ou uma multidão, a serenidade de um pequeno montículo à beira-rio onde se rugem as notas correspondentes a “c’est l’amour qui vous berce en chantant.

[1] in «Jean Renoir vous parle de son art», programa de televisão em que o realizador francês apresentava os seus filmes ao público. As apresentações foram transcritas e publicadas em Jean Renoir: entretiens et propos, livro organizado por Jean Narboni, e traduzidas para português por Julio Bezerra para o catálogo A vida lá fora: o Cinema de Jean Renoir, editado pela Furila Filmes e patrocinado pelo Banco do Brasil a propósito da grande retrospectiva dedicada ao cineasta em 2017.



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