por António Cruz Mendes
Margarida Cardoso, nascida em Tomar, viveu em Moçambique até aos 12 anos de idade. Regressada a Portugal, estudou cinema e comunicação visual na escola António Arroio e trabalhou como assistente de realização, anotadora e fotógrafa de cena com vários
realizadores (Joaquim Leitão, João Botelho, Luís Galvão Teles, Luís Filipe Rocha...) e iniciou a sua carreira como realizadora em 1996.
Kuxa Kanema, a sua segunda longa-metragem, uma montagem de imagens de filmes produzidos pelo INC intercalada por depoimentos de pessoas que estiveram envolvidas na sua realização, pode ser abordada a partir de diferentes linhas de leitura.
Numa primeira abordagem, é um documentário que começa por nos informar das condições de vida do povo moçambicano, sobretudo nas zonas rurais, à data da independência. A imagem das palhotas, das crianças descalças, da ausência de estruturas básicas de saúde e educação, revelam uma situação de subdesenvolvimento económico fundado numa agricultura de subsistência. Mas dá-nos também notícia das esperanças emancipadoras despertadas pela independência, bem patentes nas imagens dos grandes comícios e do entusiasmo despertado pelas palavras de Samora Machel. E, depois, das consequências da guerra de agressão perpetrada pela África do Sul e pela Rodésia, mais tarde prolongada pela guerra civil
desencadeada pela RENAMO, os “bandidos amados” de que nos fala a propaganda oficial. Acontecimentos trágicos que fizeram de Moçambique um dos países mais pobres do mundo.
Ao mesmo tempo, o filme de Margarida Cardoso documenta a história do INC, criado logo após a independência e produtor de um jornal cinematográfico de actualidades, meio imprescindível de comunicação num contexto caracterizado por uma taxa de alfabetização muito baixa. O filme fala-nos do seu nascimento, do voluntarismo dos intervenientes e da criação necessariamente apressada dos recursos técnicos e humanos indispensáveis ao seu funcionamento, do acolhimento entusiasta das unidades móveis que se deslocavam às aldeias para aí projectar os filmes realizados. E, depois, a sua decadência, vítima das circunstâncias da guerra (salas de cinema destruídas, unidades móveis impedidas de se deslocarem com segurança) e, por fim, do advento da televisão como meio privilegiado da comunicação social.
Mas, o filme de Margarida Cardoso pode ainda ser lido como uma reflexão acerca dos vínculos que relacionam o cinema com o poder e, neste caso, com o poder político. “Captar as imagens do povo e devolvê-las ao povo” era o lema do projecto do INC. Mas, esse processo teria que ter necessariamente um programa director. O que filmar? Que critérios deveriam presidir às filmagens? Quando Jean-Luc Godard, de visita a Moçambique, propôs que os meios de que dispunha fossem oferecidos à população para que ela os pudesse usar como entendesse, essa proposta “maluca” foi rejeitada pelo governo. As autoridades moçambicanas nunca poderiam abdicar completamente da sua supervisão sobre a actividade cinematográfica. Não havia, é certo, tal como nos é dito, uma “comissão de censura” e a liberdade dos realizadores era considerável. Mas, todos tinham consciência do significado político das suas opções e acabavam por ser eles próprios, a submeter-se a uma espécie de auto-censura. Não havia, nem nunca poderia haver, filmagens que, face a dilemas inevitáveis, pudessem assumir uma posição neutral. O que filmar? Como filmar? Qualquer opção que fosse tomada reflectiria necessariamente uma determinada perspectiva dos acontecimentos vividos. E isso tornou-se ainda mais patente num cenário de guerra de agressão e de guerra civil. Era inevitável tomar partido e, a partir de certa altura, essa obrigação foi-se traduzindo numa mensagem cada vez mais maniqueísta, mais simplista, mais distante da realidade.
De certa forma, a história contada em Kuxa Kanema confunde-se com a história de Moçambique. O estado de abandono das suas instalações do INC, parcialmente destruídas por um incêndio e, desde então, nunca recuperadas, as bobinas enlatadas que apodrecem ao abandono, guardadas por funcionários que, inactivos, esperam o dia da sua reforma, podem também ser vistas como a metáfora de um sonho que se perdeu nas encruzilhadas da história. Neste sentido, o filme de Margarida Cardoso é também um acto de resistência. Ao ressuscitar desse cemitério as imagens de um tempo de grandes esperanças, ele recorda-nos que a crença num mundo melhor é, em última análise, imorredoura.
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