por Jessica Sérgio Ferreiro
Acto dos Feitos da Guiné de Fernando Matos Silva pode ser visto como um importante documento histórico acerca da época colonial durante a ditadura do Estado Novo. O testemunho de Fernando Matos Silva transporta-nos não somente para um passado que conhecemos tal como nos foi contado e vem escrito nos livros de História, mas, e sobretudo, dá-nos acesso a uma verdade que transcende as narrativas históricas concertadas, ou seja, acedemos ao domínio da experiência e da subjectividade.
Em suma, através da crítica aos discursos apologéticos da História Nacional e da partilha da experiência pessoal do realizador, permite-nos apreender e experienciar um passado vivido, mesmo que de forma limitada, pois a história vivida é insondável na sua totalidade, ou seja, na perspectiva do conjunto de pessoas que a experimentaram. O conjunto de vivências polissémicas, mesmo que documentadas, nunca podem representar a totalidade da experiência de um “povo” heterogéneo, nem a reproduzir na sua complexidade. Não obstante, o cinema surge como a ferramenta mais eficaz ou capaz de nos dar a conhecer, sentir e “viver” um mundo ou realidades desconhecidas ou não vividas.
Assim, a razão pela qual se escolheu mostrar este filme neste ciclo de Cinema Todo-Mundo: colonialismo e a memória do futuro parece coincidir com aquela que o realizador poderá ter tido quando o realizou e montou: facultar uma visão alternativa aos discursos oficiais acerca da colonização portuguesa e estimular a reflexão das suas consequências. Em suma, confrontar memórias e cinema é memória. As imagens que Fernando Matos captou da Guiné-Bissau datam de 1969 e 1970, enquanto pertencia aos Serviços Cartográficos do Exército português. O filme foi montado posteriormente, alguns anos depois do 25 de abril de 1974, ou seja, Acto dos Feitos da Guiné é já um exercício de reflexão aquando da sua concepção, uma representação do passado ou de rememorar do passado no presente, assumindo a função de testemunho para o futuro.
Este filme funciona como antítese aos filmes de propaganda desenvolvidos pela Agência Geral das Colónias ou, ainda, promovidos pela Comissão Nacional dos Centenários e pelo SPN/SNI (Secretariado da Propaganda Nacional/Secretariado Nacional de Informação), tal como Guiné, Berço do Império 1446-1946 (1946), realizado por António Lopes Ribeiro, durante a Missão Cinegráfica às Colónias de África, no âmbito das comemorações do 5º Centenário da Descoberta da Guiné pelo Estado Novo. Este “documentário cultural”, como foi apelidado, mostra a “obra” portuguesa na Guiné-Bissau e a sua relação com o seu povo, de forma a legitimar a sua ocupação territorial e administrativa (legitimação frágil posta em causa desde o período que antecedeu e sucedeu a Conferência de Berlim de 1884/1885, na qual se renegociaram as fronteiras e se redistribuíram os “direitos” de ocupação pelas diferentes potências europeias), tentando mostrar provas dos progressos que o território e suas gentes beneficiavam com a administração portuguesa. O documentário faz uso de uma eloquente voz-off que nos dirige e impõe uma interpretação rígida às imagens que discorrem ao longo do filme, sempre vangloriando o engenho e a benevolência do Estado Novo.
Contrariando a narrativa paternalista, promovida pelo Estado Novo, e a Política do Espírito, desenvolvida por António Ferro, que difundia a grandeza da Nação e o seu papel na “História Universal” e deu “novos mundos aos Mundo” (Ferro, 1949, p. 41), Fernando Matos Silva subverte a sua função de operador de câmara do Exército português, atendendo ao facto que os Serviços Cartográficos realizaram vários filmes de propaganda (os primeiros inclusive) para o Estado Novo, tal como: Guiné: aspectos industriais e agricultura (1929) ou, ainda, a Inauguração das Comemorações Nacionais de 1940 (1940) para celebrar o duplo centenário (1140-1143/1640), relativo às datas da Fundação e Restauração de Portugal. Efemérides, as quais, são ainda hoje usadas como mote por grupos ultranacionalistas e neonazis.
Para tal, Fernando Matos Silva recorre à encenação dramática e à sátira, convocando diferentes arquétipos que funcionam como lugares de memória, representados nas figuras emblemáticas da história nacional, em contraposição às imagens de arquivo da Guiné-Bissau sob domínio colonial. Assim, através de uma montagem dialéctica, os heróis mitificados são ridicularizados e contrariados (com exceção do guerrilheiro que no final reaparece como civil/ativista político e cuja luta continua). Por exemplo, aos tempos áureos dos “descobrimentos” e às missões de evangelização que lhes sucederam, é-lhes acusado a expropriação dos corpos, a escravidão que se perpetuou no trabalho forçado ainda praticado no século XX.
O cenário de onde surgem as personagens míticas que saem dos diferentes “portais temporais” da História é, por vezes, percorrido pela câmara num movimento lateral que podemos associar ao travelling moral, para nos revelar a face oculta das narrativas oficiais promovidas pelo estado fascista, mostrando-nos e contando-nos a dura realidade da guerra colonial (as mortes, os feridos de guerra nos dois lados da luta armada), como resultado “natural” de uma longa história de opressão e violência, ou seja, como consequência das estruturas de ocupação imperial e colonial sedimentadas ao longo dos séculos, a par com a lógica extrativista e capitalista (e de domínio de uns sobre os outros) imposta, exacerbadas por influências externas (por exemplo, dos Estados Unidos da América – figurados na personagem Ulisses Grant, entre outras potências ocidentais).
O realizador recorre ainda aos arquivos do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), como contraponto à narrativa portuguesa oficial, mas, também, como “narrador alternativo” aos seus próprios relatos, consciente da sua posição de privilégio que expressa a várias ocasiões quando, por exemplo, sobrepõe o som da metralhadora às imagens que captou da Guiné-Bissau, inclusive das suas paisagens e das práticas culturais dos Bijagós, ou seja, refere-se ao acto de filmar, criticando novamente a missão dos Serviços Cartográficos do Exército – extrair e representar etnicamente o “outro” e consolidar a imagem que o Estado quer transmitir de si e daqueles que domina para se legitimar.
O uso dos arquivos do PAIGC[1] que documentam as lutas de liberação e os discursos de Amílcar
Cabral são interessantes por nos proporcionarem outras “narrativas” de um mesmo evento, mas, também, por nos revelarem como o cinema tem sido instrumentalizado, ora para a propaganda, ora para a militância e, em última instância, como meio pelo qual todos estes usos são contemplados e pensados para possibilitar a reflexão e a crítica, que se crê ser o objectivo último de Acto dos Feitos da Guiné.
Por fim, são mostradas imagens do fim da guerra, figurado no lixo da indústria militar que restou, abandonado, na Guiné-Bissau livre, de par com as imagens de Lisboa no período que seguiu ao 25 de Abril de 1974, deduzindo-se o movimento convergente e interdependente das lutas pela liberdade, das quais somos ainda todos devedores e herdeiros da sua missão inacabada.
[1] Algumas das imagens da PAIGC usadas por Fernando Matos Silva voltarão a estar presentes no próximo filme deste ciclo: Nome (2023) de Sana Na N’Hada, realizador responsável por várias captações de imagens para o PAIGC quando jovem. Nome (2023) será exibido dia 10 de outubro de 2024.
Bibliografia consultada:
Bernardo, L. & Laranjeiro, C. (2018). “Acto dos Feitos da Guiné: o início e o fim da história”. In Piçarra, M. do C. (ed.). A Coleção Colonial da Cinemateca. Cine Clube de Viseu, 88-103.
Branco, S. D (2016). “O Cinema como Ética”. In Atas do V Encontro Anual da AIM, 135-143. Lisboa: AIM. ISBN 978-989-98215-4-5.
Caetano, M. (junho de 1946). “Congresso do V Centenário do Descobrimento da Guiné portuguesa. Oração Inaugural de S. Ex.ª Ministro das Colónias”. In Boletim Geral das Colónias. Junho de 1946, Vol. XXII, Nº 252. pp. 3-10
Ferro, A. (1949). Estados Unidos da Saudade. Edições SNI.
Piçarra, M. do C. (2015). Azuis Ultramarinos. Propaganda Colonial e Censura no Cinema do Estado Novo. Edições 70.
Filmografia:
Lopes Ribeiro, A. (1946). Guiné, Berço do Império 1446-1946, acessível para visualização em:
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