quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Moi, un noir (1958) de Jean Rouch



por João Palhares

Até há relativamente pouco tempo, não teria mais referências de Jean Rouch do que a memória de um professor que muitas vezes começava as frases com “Jean Rouch dizia...”, o que para um aluno talvez não seja a melhor das introduções a quem quer que seja, sobretudo se depois não se lembra das mensagens transmitidas. Mas a verdade é que o cineasta francês chegará muito provavelmente à maior parte das pessoas através dos conhecimentos que fez por esse mundo fora, das formações e ateliers que promovia um pouco por todo o lado e das relações que cimentou com museus, cineclubes e outros realizadores. Trabalhando sobretudo em África, influenciou Jean-Luc Godard, que disse que “Jean Rouch não roubou o título do seu cartão de visita: responsável de pesquisa no Museu do Homem. Existirá definição mais bela de um cineasta?” Trabalhou com Manoel de Oliveira nos anos noventa, o que resultou na curta-metragem En une poignée de mains amies, sobre a história do rio Douro e a relação dos dois homens com duas construções do arquitecto Gustave Eiffel. Já uns anos antes tinha apadrinhado presencialmente o doutoramento honoris causa do cineasta portuense na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, em 1989, na qualidade de presidente da Cinemateca Francesa, sendo ainda um dos primeiros divulgadores mundiais da obra de António Reis e Margarida Cordeiro, quando nos disse a todos, nos anos setenta, para deixarmos tudo e irmos ver Trás-os-Montes[1]. 
 
Através do seu trabalho etnográfico com equipamento portátil de 16mm no continente africano, inspirou centenas de criadores a fazer outro tanto em África, em França, em Portugal e inúmeros outros locais. O alcance do mais pequeno gesto deste homem que fez mais de cem filmes e amava acima de todas as outras as obras de Dziga Vertov e Robert Flaherty, é imenso. Depois do 25 de Abril de 1974, veio muitas vezes a Portugal através do Instituto Franco-Portugais, no Porto, dirigido pelo diplomata e adido cultural Jacques d'Arthuys, que também trabalhou com Rouch em Moçambique na realização de Makwayela, curta-metragem fabulosa de 1977 em que um grupo de trabalhadores fabris moçambicanos interpretam uma canção e uma dança sobre o trabalho nas minas da África do Sul durante a colonização portuguesa, e na produção de ateliers de filmagem em super 8, formato privilegiado encontrado por Rouch para o ensino da antropologia visual e que foi requisitado como programa de ensino do cinema pela FRELIMO a Rouch durante o Kuxa Kanema, como se pôde ver no documentário homónimo de Margarida Cardoso. Daí não ser estranho traçar uma linha imaginária por esse país fora, percorrê-la e ouvir alguém na Covilhã, no Porto, em Braga ou em Viana dizer num fim de tarde qualquer, “eu conheci o Jean Rouch”. 

Como se tinha visto em Les maîtres fous, Rouch costumava levar os seus filmes apenas com as captações das imagens e projectava-os em vários locais, improvisando uma narração durante a exibição, o que o permitiria ver também como melhorar o texto que depois usava na narração final, mediante as críticas ou os elogios que recebia. Esta liberdade de produção, também por si inspiradora, faz dos filmes matéria viva que se pode trabalhar em digressão e encontro com os outros, não sozinho numa mesa de montagem escura. Como é óbvio, não é a única forma de trabalhar. E terá também as suas contrariedades, pois a partir de certa altura as possibilidades e os caminhos podem ser tantos que se esquece o porquê de se ter começado. Mas lembra-nos aquele início do belo livro de Jerry Lewis sobre cinema, The Total Film-maker, que é sempre boa ideia transcrever e quase que apetece fazê-lo de ponta a ponta, portanto saiba-se: 

Onde começam? Não há tabuleiro de Monopólio. Nenhum "Comece. Não Passe pela Casa Partida". Eu acho que se começa por estar só lá, sendo curioso e ter a paixão por fazer filmes. 
Mais importante: façam filmes, rodem película, passem película. 
Façam qualquer coisa. 
Façam filmes. Filmem qualquer coisa. 
Não tem que ter som. 
Não tem que ter título. 
Não tem que ter cor. 
Não há "ter que". Fazer, só. 
E mostrem-no a alguém. Se é uma plateia de um, façam e mostrem, e depois tentem outra vez. 
Isto é o "como". 
Parece simples. 
Não é. E daí, talvez seja.” 

Terá sido talvez o rescaldo da longa produção e do longo lançamento de Les maîtres fous, com as suas tentativas e erros, com a sua recepção polarizada e inconsciente, com a sua montagem criativa, esclarecedora e estruturante, que impulsionou Rouch no sentido da antropologia partilhada e Moi, un noir parece ser um dos primeiros exemplos dessa corrente na sua obra[2]. Para começar, já não é só ele quem narra o filme, deixando-se aliás para muito segundo plano e cabendo a maior parte da voz-off a Oumarou Ganda, que também interpreta Robinson e começaria a realizar os seus próprios filmes a partir da década de 60. Depois, a própria criação do filme foi pensada em conjunto tendo como ponto de partida a imagem já montada de uma película 16mm Kodachrome sem banda de som, sendo a estória criada pelos próprios actores, desafiados por Rouch a dobrarem e comentarem os seus próprios actos no ecrã. As ideias e as acções que estão por trás deste método, no caso de Moi, un noir, parecem-nos bem mais sedutoras do que os resultados, que pelo menos num primeiro contacto, que pode não ser suficiente, não parecem conter as surpresas e os assombros imprevistos do melhor trabalho de Rouch. Mas a antropologia partilhada nasce outra vez da admiração do francês por Robert Flaherty, que na rodagem de Nanuk, o Esquimó quase perdeu o emprego e se viu confrontado com o mau material que tinha reunido em montagem. Perdera ainda parte das filmagens num incêndio. Decidiu voltar ao Quebec e, desta vez, ia mostrando o que filmava aos inuítes enquanto decorria a própria rodagem, levando para o efeito equipamento de revelação e de montagem. Jean Rouch elevou a parada, mostrando não apenas o material que filmava aos seus actores, mas tornando-os também colaboradores activos na pesquisa, nas traduções, na captação sonora, na escrita, na produção e na realização, esperando assim que as suas vozes fossem parte integrante dos seus filmes e que depois assinassem até os seus próprios trabalhos.

[1] “Allez voir, toutes affaires cessantes, Trás-os-Montes!”
[2] Não tivemos tempo para fazer um levantamento exaustivo da obra de Jean Rouch, portanto não sabemos se Baby Ghana, também narrado a dois, foi feito antes ou depois de Moi, un noir.



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