por João Palhares
Percorrendo toda a história do cinema, se é que isso é possível, não se encontram muitos casos de realizadores cujos filmes tenham sido escritos por eles adaptando os seus próprios romances. Houve muitos romancistas que se tornaram argumentistas, houve muitos realizadores que escreveram os
próprios argumentos, ainda há, mas a combinação romancista-argumentista-realizador é rara. Elia Kazan, com
America, America e The Arrangement, adaptações dos seus livros homónimos dos anos sessenta, terá sido um dos primeiros, se descontarmos Marcel Pagnol e Jean Cocteau, que adaptaram algumas das suas peças ao cinema. Samuel Fuller escreveu e realizou os seus filmes, também escreveu romances, mas não realizou nenhuma adaptação de um romance seu, fez o contrário, novelizou uma obra que fez para a televisão (Morte na
Rua Beethoven, editado pela Círculo de Leitores em 1989) e fez o mesmo com O Sargento da Força 1. Marguerite Duras é uma escritora muito conhecida, mas também realizou e adaptou para cinema várias das
suas obras, como La Musica, Détruire, dit-elle, Jaune, Le Soleil ou India Song. Gordon Parks e Dalton Trumbo adaptaram The Learning Tree e Johnny Got His Gun, respectivamente, em 1969 e 1971, sendo o de Trumbo o único filme que realizou. E Catherine Breillat tem vindo a adaptar bastantes das suas obras para o
cinema desde 1975, a última das quais em 2013, Abus de faiblesse.
Nascido em 1923 em Ziguinchor, no sul do Senegal, Ousmane Sembène fez um pouco de tudo.
Expulso da escola na sequência de uma disputa com o director, mudou-se para o Dakar aos dezasseis anos. Trabalhou como pescador, mecânico, pedreiro, foi mobilizado pelo exército francês e integrou os atiradores senegaleses, experiência traumática que incorporou num dos seus livros e que o tornou num anti-colonialista convicto. Foi estivador em Marselha durante dez anos e membro activo do partido comunista francês. Interessando-se pela escrita e pela literatura, começou a frequentar as bibliotecas da Confederação Geral do Trabalho e a seguir cursos oferecidos pelo partido comunista, publicando o primeiro romance, Le docker noir (“O Estivador Negro”), em 1956. “O partido comunista tinha muita força,” disse Sembène numa entrevista de 2004 a Michèle Levieux[1], “e o velho militante que há em mim deve dizer que foi o que me fez descobrir a literatura com os Cahiers du Sud, que se situavam em frente ao La Marseillaise[2]. Os meus primeiros textos foram editados pela Action poétique, que tinha publicado os poemas de Kateb Yacine e depois pela Présence africaine.” Da sua obra literária, foram publicados em Portugal Os pedaços de madeira de Deus, de 1960, pela Editorial Caminho em 1979, que foi reeditado pela Biblioteca Avante! em 2010, Xala, de 1974, pelas Edições 70 também em 1979, e O harmatão, de 1964, outra vez pela Caminho em 1983
“Voltei a Dakar e viajei pela África,” contou Ousmane na mesma entrevista. “Queria conhecer o meu próprio continente. Fui a todo o lado ao encontro de povos, etnias e culturas. Tinha quarenta anos e vontade de fazer cinema. Queria dar outra impressão de África. Como a nossa cultura é oral, eu queria mostrar a realidade através das máscaras, das danças e da representação. A publicação de um livro escrito em francês chega apenas a uma minoria, enquanto que com um filme se pode fazer como Dziga Vertov, "Kino Pravda", cinema ambulante que permita discutir com as pessoas, debater ideias. Os melhores críticos são os do próprio povo.” Depois deste périplo africano, que durou um ano, Sembène foi ter com Georges Sadoul a Paris, conseguindo ingressar no Studio Gorki de Moscovo por intermédio de André Bazin. O cineasta soviético Mark Donskoi, conhecido pela trilogia de filmes que dedicou ao escritor Máximo Gorki, era o director da escola e foi também seu professor, junto a Serguei Guerassimov e Serguei Bondarchuk. Sarah Maldoror,
realizadora do belíssimo Sambizanga, foi sua colega. “Todos me ensinaram que nada se consegue sem trabalho. Os melhores cineastas africanos, até hoje, foram formados na escola de cinema de Moscovo."
Mandabi é uma adaptação do romance do mesmo nome, também escrito por Ousmane Sembène. Descreve os muitos problemas que um vale postal de 25.000 francos enviado de França causa a Ibrahim Dieng, à família e à pequena comunidade que passa a depender do patriarca e a visitá-lo regularmente assim que sabe da notícia. Gradualmente, esse vale postal vai despertando a inveja e a mesquinhez de todos, facilitando muito a vida dos que menos escrúpulos têm em espezinhar os outros no processo, como os vários interesseiros que se oferecem para ajudar Ibrahim. Como disse Sembène noutra entrevista, “a corrupção não nasce com as pessoas. São as pessoas que cultivam a corrupção.”[3] O filme mostra-nos as consequências de um sistema burocrático herdado da França colonial, terrivelmente desenquadrado com as circunstâncias de vida de uma comunidade que se tem de endividar para comer todos os dias. O ritmo do filme, muito bem conseguido, permite-nos reparar em pequenos rituais como os cortes de cabelo na rua ainda no genérico inicial, as orações que todos proferem como vírgulas no seu discurso, mas que nenhum deus parece ouvir, os problemas que Ibrahim tem com a roupa que veste, ajeitando-a com as mãos a cada passo do caminho, ou os vários planos de pessoas com as mãos em colares de contas, subindo e descendo as pequenas esferas possivelmente para saber se o dinheiro vai chegar até ao final do dia. Um dos resultados de todo o processo é a encenação defensiva de um pequeno teatro das aparências, de se fingir que se é rico quando se é pobre, de “mentir para unir em vez de dizer a verdade para dividir,” de tirar um bocado aqui para pôr ali quando se tiver e esperar que ninguém repare no que quer que seja. E o vale postal revela-se mais caro do que aquilo que vale, levantá-lo equivale à penúria, portanto estamos com Ibrahim até ao fim e concordamos com ele quando diz que “vou deixar de ser decente. E também me vou converter num ladrão e num mentiroso.” Sobretudo depois de ver o engravatado mentir-lhe com todos os dentes quando ele está de joelhos a pedir-lhe o dinheiro que não lhe pertence. E, por fim, não resistimos a citar O harmatão, quando a páginas tantas se lembra que “(...) os ratos trabalham aos pares quando roem o pé da pessoa adormecida: um sopra e o outro rói. (…) O rato que sopra é a religião. O que rói é o imperialismo.”
[1] Publicada in «L'Humanité», 15 de Maio de 2004.
[2] O Cahiers du Sud e o La Marsellaise são dois jornais de Marselha. O primeiro foi fundado pelo dramaturgo e cineasta Marcel Pagnol, com o nome de Fortunio, em 1914.
[3] in «Rencontre avec Sembène Ousmane, écrivain-cinéaste sénégalais», publicado no Weekend, suplemento semanal do jornal senegalês Le Quotidien. Disponível no blog CinéAfrique.org: "https://archive.wikiwix.com/cache/index2.php?url=http%3A%2F%2Fblog.cineafrique.org%2F2009%2F08%2F27%2Frencontre-avec-sembene-ousmane-ecrivain-cineaste-senegalais%2F#federation=archive.wikiwix.com&tab=url" (consultado a 22 de Outubro de 2024).
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