quarta-feira, 16 de outubro de 2024

KARINGANA os mortos não contam histórias (2020) de Inadelso Cossa



por Jessica Sérgio Ferreiro

Inadelso Cossa é um jovem realizador e produtor moçambicano, nascido em 1984, que conta com várias metragens que se focam, principalmente, nas memórias e pós-memórias da guerra colonial e da guerra civil moçambicana, tal como a curta-metragem Uma memória quieta (2014), que retrata a violência exercida pela PIDE em Moçambique, a longa de documentário Uma memória em três atos (2017), sobre o trauma pós-colonial e o esquecimento ou as rasuras da memória e, ainda, a sua mais recente longa de ficção As Noites ainda cheiram a Pólvora (2024), ainda a correr os festivais. 

Em KARINGANA os mortos não contam estórias (2020), o protagonista chega ao que nos parece uma terra desertificada. Trazido por um carroceiro e seu burro, relembra-nos o Caronte que transporta os mortos para o submundo. O protagonista chega, assim, à sua terra natal, à aldeia desaparecido depois da guerra colonial e da Guerra Civil Moçambicana, que durou 16 anos e teve início 2 anos após a Independência. Tema, o qual, o filme anterior Kuxa Kanema – O nascimento do cinema, exibido nesta sessão explora. 

O protagonista de KARINGANA os mortos não contam estórias, procura o velho Yamba para que lhe devolva a memória de um passado que esqueceu, ou seja, que não viveu, mas que sente no âmago do seu ser, um vazio que o desterro deixou antes do seu nascimento e da tomada de consciência na linha do tempo presente. Este exílio refere-se ao trauma da guerra e seus refugiados, ao stress pós-traumático, bem como todas as marcas que deixou naqueles que herdaram as dores que os seus ascendentes emanavam, expressavam ou reprimiam, refere-se assim à pós-memória e, em específico, à pós-memória do trauma. Em suma, a personagem principal procura entender a história do seu país e forjar a sua identidade, fora da linha de tempo a que pertence e da qual não é possível retirar-se. 

“Karingana wa Karingana” é uma expressão dos Ronga de Moçambique, similar a “era uma vez”, diz respeito à prática cultural de contar estórias (oralmente), ao conhecimento imbuído nas fábulas, nos contos e na poesia, ou seja, é o reportório cultural de um povo, a memória incorporada e a História Oral de um povo. Karingana é a prática através da qual a herança cultural é transmitida de geração em geração. Contudo, a necessidade do protagonista ouvir as estórias do velho Yamba não pode ser satisfeita, porque o velho sábio está surdo e mudo, de olhos inflamados e vidrados, preso no passado que o trauma lhe traz de volta à retina incansavelmente. A repetida ocorrência vívida e literal do trauma que surge na consciência pelo inconsciente do velho é declarada pelo protagonista/narrador que encontra o velho Yamba num canto escuro de um quarto/sala, em silêncio, com o olhar fixo num horizonte que não conseguimos ver, uma realidade paralela, um passado longínquo, incrustado na mente do velho sábio que já não pode contar estórias. 

Assim, como o olho gasto do velho Yamba que, através de uma visão esférica e constrita, revive as memórias traumáticas que lhe surgem no interior da mente e do olhar, o protagonista procura na sua câmara de filmar de 16mm, no arquivo e no cinema em geral, imagens do passado e do que dele restou. Olhar, o qual, nos é mostrado através de uma lente grande-angular, quase de olho-de-peixe, dando-nos a impressão de que também estamos a espreitar pelo ocular do visor da câmara de filmar, como o protagonista, tentando captar o passado (registado), surgindo as imagens de arquivo dos refugiados de guerra, mas também da bela mulher (Kaila) que se banhava nas águas calmas do rio, mas que já desaparecera com a possibilidade do sonho do protagonista se poder juntar a ela (morte da utopia). 

Esta procura do passado no que ficou registado dele e no acto de filmar o que dele restou no presente, não nos permite, contudo, aceder ao que o velho Yamba vivenciou, viu e vê na solidão do seu silêncio, pois, como a reaparição do trauma, mesmo que literal, é o atraso próprio do trauma e da sua re-ocorrência (reviver do trauma por aquele que sofre de stress pós-traumático) na linha de tempo presente que não nos permite testemunhar o próprio tempo e o que já aconteceu, muito menos participar ou alterar o passado que teima, também, em assombrar os contemporâneos que são os herdeiros da memória coletiva de um povo que sofreu. Não obstante, o esforço do protagonista na luta contra o tempo, através da sua máquina de filmar (câmara como arma) não é totalmente mal-sucedida. É no silêncio e no deserto das ruínas do passado, que a câmara de filmar do protagonista captou, que encontramos o indizível, o irrepresentável (como o próprio afirma no final: “Qual estória narrar?” Como representar o que não se vivenciou, o passado insondável e complexo? Como representar o irrepresentável, a violência e o terror?). 

O velho Yamba, de par com a bela jovem – o fantasma de Kaila, poderão significar, também, todos aqueles que pereceram na guerra e aqueles que já se foram e não puderam contar as suas estórias ou curar-se do trauma do terror, pois os mortos não dizem poesia, nem ouvem poesia. Os mortos não contam estórias.



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