sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Margot (2022) de Catarina Alves Costa



por Virgílio Oliveira e Jessica Sérgio Ferreiro

Vigarizaram-nos de forma inenarrável ao ensinar-nos sobre a África “portuguesa”. Fizeram-nos aprender os rios, as vias-férreas o nome das províncias e os nomes das respetivas capitais, e dramaticamente não nos ensinaram nada sobre os afetos. A dada altura, quando nos é mostrado um excerto de um filme feito pelo Estado Novo, com aquela voz de timbre e tom decentes e que era indubitavelmente reconhecida como voz da propaganda, quase que choramos de raiva. Choramos porque os desordeiros têm a mania de ordenar os outros. A instrumentalização das imagens das danças Mapiko, que Margot recolheu dos Maconde, é desvirtuada por uma narração sobranceira e preconceituosa. 

Margot Dias (1908 - 2001) foi uma pianista alemã e etnomusicóloga que, juntamente com o antropólogo Jorge Dias, realizou várias missões etnográficas em África durante a ocupação colonial, confrontando-se com problemas ético-políticos inerentes ao sistema colonial e que, por conseguinte, afectavam o trabalho de campo e a relação que mantinha com a comunidade Maconde, especialmente após o Massacre de Mueda, em 1960. 

O filme começa com a entrevista que a realizadora fez a Margot em 1996, esta já com 88 anos. Várias passagens dos diários de Margot são lidos por esta, à medida que também nos conta as suas memórias de África. Catarina Alves Costa recorre aos diários de campo de Margot para nos narrar (em voz-off) as imagens que Margot registou, proporcionando-nos profundidade e complexidade aos apontamentos ou fragmentos vídeo-sonoros que isolam as práticas musicais e ritualísticas, ou seja, dão-nos uma visão do que ficou fora do campo de imagem. Assim, é nos dado a conhecer o contexto político-social da altura, bem como as impressões pessoais de Margot acerca da sua relação com as comunidades e das circunstâncias vividas. 

Partimos/transitamos, deste modo, entre a crítica a um regime de pensamento e de representação, que podemos classificar de “ocidental” (modo de fazer ciência), que tem o “outro” e a sua cultura como objecto de estudo. A obsessão em dissecar, descrever e compreender as práticas e hábitos culturais do “exótico”, bem como registar, guardar e conservar os objectos retirados do seu contexto, usos e simbolismo, está patente nas estantes do Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, que as imagens atuais, captadas por Catarina Alves Costa, nos mostram das máscaras, usadas no rito de iniciação Likumbi, e dos vasos de barro escuro e de desenhos brancos. Em contraponto, vemos as filmagens antigas de Margot que nos esclarecem sobre a origem e função destes objectos e rituais, de par com a música e os instrumentos musicais tradicionais, mas que revelam o mesmo interesse pelo desvendar dos segredos do “outro”[1] (ex: rituais de iniciação feminina, normalmente velada). 

Catarina Alves Costa revisita todo o material recolhido e viaja até Moçambique, como Margot fizera décadas antes, para devolver as imagens e registos sonoros que a musicóloga Margot Dias registou do povo Maconde para a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, ou seja, para o Estado Novo, levando-nos a problematizar posicionamentos ético-políticos. 

Assim, Margot representa o sujeito colonial e encarna as “crises” da antropologia na época colonial e pós-colonial. Não obstante, o filme não se contenta com uma visão simples polarizada de Margot e do próprio trabalho antropológico, demonstrando e comprovando as ambivalências e complexidades intrínsecas ao ser(-se) humano. A leitura dos diários revela-nos o olhar crítico que Margot e Jorge já tinham da violência colonial, da desigualdade e falta de respeito para com os africanos. Percebemos, ainda, a relação emocional estabelecida entre as várias pessoas envolvidas nos estudos das missões etnográficas e a importância desta para Margot. 

Catarina Alves Costa percorre os locais e pisadas de Margot, na expectativa de, porventura, reencontrar pessoas que a tenham conhecido, para recolher, por sua vez, memórias acerca da destemida investigadora, e, em jeito de retorno, talvez reencontrar-se a si mesma, enquanto antropóloga, mulher e pessoa. Assim, à medida que a investigadora mostra aos moçambicanos de Hoje, as imagens do seu passado e sua cultura, são reativadas memórias, partilhas e emoções. A importância em descolonizar a cultura e o pensamento são evocadas pelos jovens músicos de origem Maconde que tentam recuperar as artes musicais do seu povo, bem como a emergência em resgatar a sua cultura e identidade, perdida gradualmente ao longo dos vários conflitos (guerra colonial e Guerra Civil Moçambicana) e do subsequente êxodo rural para as cidades, mas, também, em prol de uma cultura-mundo (conceito de Gilles Lipovetsky, entenda-se, cultura hegemónica como a cultura de consumo e das indústrias culturais). 

*

Assim, este filme leva-nos numa viagem pelo tempo, revisitando modos de vida que coabitavam com o passado colonial, para chegar à actualidade, composta pelos mesmos “lugares de memória” de outrora, estando, contudo, em cena, novos atores e costumes, salvaguardando-se o arquivo e a memória partilhada entre dois povos. 

Este documentário revela, ainda, a importância do trabalho etnográfico desenvolvido e do cinema como “lugar de memória viva”, que poderíamos precipitada e erradamente julgar como uma forma de mortificar a memória. Neste gesto que Margot, de forma pioneira, iniciou e que Catarina perpetua, a memória do passado, presente e futuro continuarão a nutrir os imaginários dos que virão depois, como é tão bem declarado por um escultor de estatuetas na segunda metade do filme. 

O filme termina com o fim da missão etnográfica e a despedida de Margot, “forçada” a deixar Moçambique devido à intensificação das tensões entre o poder colonial e as forças de libertação, pois sabemos que os Maconde, situados no planalto a norte e sul do rio Rovuma, foram guerrilheiros importantes, existindo um bairro específico para estes em Maputo (e que Catarina visita). Depois do Massacre de Mueda em 1960, em que centenas de trabalhadores (Maconde) das produções de algodão reclamavam por melhores condições de trabalho, foram assassinados pelas autoridades portuguesas, acontecimento dramático que teve impacto na relação que Margot tinha com a comunidade. Apesar de ter sido bem recebida e integrada quando voltou sozinha em 1961 a relação altera-se, como a própria narra emocionada na entrevista com Catarina, referindo a gentileza e o tacto com que foi tratada, relendo o momento em que lhe fizeram uma pulseira de barro e lha colocaram, como tipicamente fazem as mulheres Maconde quando vão pela primeira vez buscar barro. Contudo, o início do conflito armado (indícios que por vezes se notam quando surgem, inadvertidamente, no campo de imagem de Margot, uma ou outra AK-47, por entre aqueles que executam danças tradicionais) e a desconfiança ou, melhor, as precauções que os Maconde tomam em relação a Margot Dias, talvez por ordem da FRELIMO, impossibilitam o seu trabalho etnográfico e obrigam-na a regressar à metrópole. 

Em suma, o que a Catarina consegue é fazer um extraordinário filme que nos conta a história toda, alinhando os sucessivos apontamentos e registos que Margot deixou para a memória do futuro.

[1] Como o filósofo e escritor da Martinica Édouard Glissant acusa, defendendo o direito à opacidade.




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