sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Nome (2023) de Sana Na N'Hada



por Jessica Sérgio Ferreiro

Nome (2023) de Sana Na N’Hada, similarmente ao filme Acto dos Feitos da Guiné (1979) de Fernando Matos Silva, exibido na sessão anterior, é um trabalho de memória, de reflexão sobre o passado. Contudo, este filme não reflecte apenas sobre as consequências do colonialismo e das inevitáveis lutas de libertação, mas, e sobretudo, foca-se nas aspirações frustradas da luta pela liberdade e igualdade. Assim, este filme permite dar continuidade à história que Fernando Matos Silva nos contou em Acto dos Feitos da Guiné, a partir de uma visão de dentro, do olhar guineense e de alguém que esteve envolvido nas lutas de libertação e que viu e assiste às transformações que Guiné-Bissau sofreu. 

Sana Na N’Hada, como contou na entrevista à Films en Bretagne – Union des professionnels, no 12 de março de 2024, Nome é uma síntese do que aconteceu durante e depois da guerra pela Independência da Guiné, tendo-se inspirado em muitas das suas memórias pessoais, recorrendo ainda à memória do aquivo, composta de imagens e sons captados pelo realizador e seus colegas durante o conflito até ao momento que a independência fora declarada. Alguns excertos destes filmes foram usados por Fernando Matos Silva no filme Acto dos Feitos da Guiné de 1979/80. 

Sana Na N’Hada foi recrutado, ainda na sua adolescência, para ensinar a ler aqueles que não sabiam (como decretara Amílcar Cabral) numa aldeia onde se juntavam pessoas que lutavam pela independência. Sem a possibilidade de frequentar o curso para se especializar e tornar-se professor no Conacri, foi para um hospital de campanha para frequentar um estágio de enfermagem promovido pelo Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Por não ter idade e constituição suficiente para dar apoio no campo de batalha, foi enviado para Cuba em 1967 aos 17 anos, após terminar o liceu, juntamente com Flora Gomes, Josefina Lopes Crato e José Bolama, para aprender cinema no Instituto Cubano de Artes e Indústrias Cinematográficas, e na sua volta, em 1972, registar o nascimento da Guiné livre, como desejava Amílcar Cabral, enquanto disseminariam, também, imagens da causa anticolonial e sensibilizariam a comunidade internacional. Após a independência Sana Na N’Hada co-fundou e foi eleito director do Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau (INCA), em 1978. Infelizmente cerca de 60 por cento dos arquivos fílmicos foram danificados, devido à não conservação por parte das autoridades responsáveis. 

Os arquivos são usados em diversos momentos de Nome (2023), mesclando ficção e real, enriquecendo esteticamente e narrativamente o filme, conjugando os diferentes planos através de raccords que casam a estória, os elementos visuais e auditivos ficcionais com os do arquivo. 

Sana Na N’Hada proporciona-nos uma visão decolonial do conflito armado, onde as tradições, mitos e rituais dão profundidade à estória, expresso no espírito que anda em torno das personagens fulcrais do filme, como por exemplo: o menino Raci. Este tem o dever de construir um bombolom, como seu pai, a fim de restituir o equilíbrio na aldeia e dar descanso à sua alma. Este instrumento de percussão é um elemento crucial, pois era através deste que os guineenses convocavam as pessoas para reuniões secretas e alertavam a aproximação do conflito armado. O realizador, na entrevista dada, referiu que se inspirou na sua própria infância e vida da aldeia na criação da personagem Raci

Através de aspectos culturais específicos da Guiné é nos possível compreender os distúrbios que o domínio colonial e a guerra causou no “mundo antigo”, cujos ancestrais e espíritos deambulam errantes à volta dos vivos, por não respeitarem as tradições e os rituais antigos (como, por exemplo, os respeitantes aos funerais), testemunhando a destruição de um país que continuará a “corromper-se”, entregue às ambições materiais e à vanidade do homem “pequeno”, bem como aos “senhores” que a luta pela independência de uma nova Guiné queria anular, como referido no filme pelos guerrilheiros do PAIGC: “Na Guiné livre nunca mais terá senhores, nem brancos, nem pretos”. 

Assim o destino da Guiné-Bissau encontra-se personificado na personagem Nome (cujo nome significa “homónimo” em Crioulo da Guiné), denominação, a qual, encontra semblante nos companheiros de guerrilha oriundos de diferentes regiões, etnias e línguas da Guiné, sendo referido o equivalente nos grupos étnicos-linguísticos dos Manjacos, Balantas e Fulas. Assim, Nome (“o meu nome é o teu nome”) significa que existe apenas uma Guiné, que pertence a todos, por igual, sem fracções nem divisões, que segue unida na mesma direção sob os mesmos princípios e valores. Contudo, como alerta o espírito errante (ou o Deus Nindo[1], referido algumas vezes no filme), estará a Guiné “preparada para tanta felicidade?”. 

O primeiro aviso é feito quando observa Nome a fugir de noite, para fugir às suas responsabilidades com Nambú que engravidou, para se juntar aos movimentos de libertação, clamando: “(...) está lua cega, o Mundo está cego, não te deixes cegar” ou, ainda, quando Raci termina a construção do bombolom na floresta, diz: “conseguiu que a voz saísse de dentro da árvore e criou um mundo dentro de outro mundo, será isto a utopia? Nunca desistir? Estará a Guiné preparada para tanta felicidade?”. Aqui podemos relacionar o “mundo dentro de outro mundo”, ao conceito do Todo-Mundo, de Édouard Glissant e que dá nome a este ciclo de cinema, ou seja referente à ideia de um Mundo plural, anti-universal e anti-colonial, constituído por vários mundos e culturas que se relacionam em igualdade, sem a existência de comunidades subalternas. Sendo a Guiné um país pluricultural, dentro de um continente 1 Nindo é um deus “Bijagó”, ligado à natureza que criou o primeiro homem. Este não deverá quebrar as regras ancestrais sob risco de causar desgraças. africano imenso e diverso que, por sua vez, está dentro de outro Mundo global. O qual se constitui por meio da dominação e do estabelecimento de assimetrias o dividem em partes desiguais. Noutros momentos, o deus/espírito errante questiona: “Porque as pessoas se tornam tão más?” 

Seguimos a história da Guiné no pós-independência, acompanhando o percurso de Nome que, corrompido e corroído pelo amargor, se tornou num “homem mau” e ambicioso. Sob pretexto de ser compensado pelos seus esforços na guerra, quebra os princípios e valores que o PAICG defendia durante o conflito armado e procura o dinheiro fácil e aceder a um estatuto social elevado. Por conseguinte, Nome torna-se um homem da cidade, a aldeia, suas tradições e campos verdejantes ficam para trás. Nome consegue transformar-se num “Senhor” que atravessa e ocupa, com autoridade, os antigos edifícios e palácios, ou seja, os lugares de poder deixados pela administração colonial portuguesa. Da mesma forma, seguem os seus antigos companheiros de luta que, graças a Nome, obtêm uma posição de privilégio e a “sua parte” do negócio, roubando os bens e recursos que pertencem ao povo guineense. Apenas um dos antigos combatentes (), ferido em guerra, não se junta a Nome e seus comparsas, vigiando-os e acusando-os de ter traído o próprio país e a missão a que se tinham prometido. A personagem renega Nome (homónimo = Tó) e diz-se chamar doravante Tótala (que significa ninguém ou aquele que não tem nome). A personagem encontra-se numa cadeira de rodas, veste-se e usa o mesmo tipo de chapéu e óculos que Amílcar Cabral, relembrando esta figura e tudo o que defendia. A personagem é assassinada no final, como foi o líder da luta, significando, assim, o prenúncio do fim do sonho, da possibilidade de um país livre, cuja política assentaria nos princípios da igualdade, ou seja, denuncia o fim da utopia e sentencia todos os “espíritos” que acreditaram se sacrificaram na guerra à errância e à desonra, ao esquecimento. 

Não obstante, Sana Na N’hada deixa-nos um momento de esperança, figurados na personagem Nambú, antiga namorada de Nome que ficou muda (significando o silêncio associado ao trauma da violência da guerra e que Sana Na N’Hada se conteve de representar e que considera, de qualquer forma, irrepresentável), depois de lhe terem tirado o bebé durante as convulsões da guerra, e na personagem Quiti, antiga guerrilheira que salvou e adoptou a filha de Nambú e Nome. A criança representa o futuro e esperança da Guiné que sobreviveu graças ao amor de duas mães que lhe deram dois nomes diferentes, indicando-nos, de retorno, que sobrevive a possibilidade de um entendimento conjunto, se assim o entendermos: Poderá o amor salvar o mundo? Questão que nos impele a perguntar também: Poderá o cinema salvar o mundo?

[1] Nindo é um deus “Bijagó”, ligado à natureza que criou o primeiro homem. Este não deverá quebrar as regras ancestrais sob risco de causar desgraças.




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