por Jessica Sérgio Ferreiro
Nome (2023) de Sana Na N’Hada, similarmente ao filme Acto dos Feitos da Guiné (1979) de Fernando Matos Silva, exibido na sessão anterior, é um trabalho de memória, de reflexão sobre o passado. Contudo, este filme não reflecte apenas sobre as consequências do colonialismo e das
inevitáveis lutas de libertação, mas, e sobretudo, foca-se nas aspirações frustradas da luta pela liberdade e igualdade. Assim, este filme permite dar continuidade à história que Fernando Matos Silva nos contou em Acto dos Feitos da Guiné, a partir de uma visão de dentro, do olhar guineense e de alguém que esteve envolvido nas lutas de libertação e que viu e assiste às transformações que Guiné-Bissau sofreu.
Sana Na N’Hada, como contou na entrevista à Films en Bretagne – Union des professionnels, no 12 de março de 2024, Nome é uma síntese do que aconteceu durante e depois da guerra pela Independência da Guiné, tendo-se inspirado em muitas das suas memórias pessoais, recorrendo ainda à memória do aquivo, composta de imagens e sons captados pelo realizador e seus colegas durante o conflito até ao momento que a independência fora declarada. Alguns excertos destes filmes foram usados por Fernando Matos Silva no filme Acto dos Feitos da Guiné de 1979/80.
Sana Na N’Hada foi recrutado, ainda na sua adolescência, para ensinar a ler aqueles que não sabiam (como decretara Amílcar Cabral) numa aldeia onde se juntavam pessoas que lutavam pela independência. Sem a possibilidade de frequentar o curso para se especializar e tornar-se professor no Conacri, foi para um hospital de campanha para frequentar um estágio de enfermagem promovido pelo
Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC). Por não ter idade e constituição suficiente para dar apoio no campo de batalha, foi enviado para Cuba em 1967 aos 17 anos, após terminar o liceu, juntamente com Flora Gomes, Josefina Lopes Crato e José Bolama, para aprender cinema no Instituto Cubano de Artes e Indústrias Cinematográficas. Voltaram em 1972 para registar o nascimento da Guiné livre, como desejava Amílcar Cabral, enquanto disseminariam, também, imagens da causa anticolonial e sensibilizariam a comunidade internacional. Após a independência Sana Na N’Hada co-fundou e foi eleito director do Instituto Nacional de Cinema e Audiovisual da Guiné-Bissau (INCA), em 1978. Infelizmente cerca de 60 por cento dos arquivos fílmicos foram danificados, devido à não conservação por parte das autoridades responsáveis.
Os arquivos são usados em diversos momentos de Nome (2023), mesclando ficção e real, enriquecendo esteticamente e narrativamente o filme, conjugando os diferentes planos através de raccords que casam a estória, os elementos visuais e auditivos ficcionais com os do arquivo.
Sana Na N’Hada proporciona-nos uma visão decolonial do conflito armado, onde as tradições, mitos e rituais dão profundidade à estória, expresso no espírito que anda em torno das personagens fulcrais do filme, como por exemplo: o menino Raci. Este tem o dever de construir um bombolom, como seu pai, a fim de restituir o equilíbrio na aldeia e dar descanso à sua alma. Este instrumento de percussão é um elemento crucial, pois era através deste que os guineenses convocavam as pessoas para reuniões secretas e alertavam a aproximação do conflito armado. O realizador, na entrevista dada, referiu que se inspirou na sua própria infância e vida da aldeia na criação da personagem Raci.
Através de aspectos culturais específicos da Guiné é nos possível compreender os distúrbios que o domínio colonial e a guerra causou no “mundo antigo”, cujos ancestrais e espíritos deambulam errantes à volta dos vivos, por não respeitarem as tradições e os rituais antigos (como, por exemplo, os respeitantes aos funerais), testemunhando a destruição de um país que continuará a “corromper-se”, entregue às ambições materiais e à vanidade do homem “pequeno”, bem como aos “senhores” que a luta pela independência de uma nova Guiné queria anular, como referido no filme pelos guerrilheiros do PAIGC: “Na Guiné livre nunca mais terá senhores, nem brancos, nem pretos”.
Assim o destino da Guiné-Bissau encontra-se personificado na personagem Nome (cujo nome significa “homónimo” em Crioulo da Guiné), denominação, a qual, encontra semblante nos companheiros de guerrilha oriundos de diferentes regiões, etnias e línguas da Guiné, sendo referido o equivalente nos grupos étnicos-linguísticos dos Manjacos, Balantas e Fulas. Assim, Nome (“o meu nome é o teu nome”) significa que existe apenas uma Guiné, que pertence a todos, por igual, sem fracções nem divisões, que segue unida na mesma direção sob os mesmos princípios e valores. Contudo, como alerta o espírito errante (ou o Deus Nindo[1], referido algumas vezes no filme), estará a Guiné “preparada para tanta felicidade?”.
O primeiro aviso é feito quando observa Nome a escapulir-se de noite, com intuito de se juntar
aos movimentos de libertação para fugir às suas responsabilidades com Nambú que engravidou,
sussurrando-lhe: “(...) está lua cega, o Mundo está cego, não te deixes cegar” ou, ainda, quando Raci termina a construção do bombolom na floresta, diz: “conseguiu que a voz saísse de dentro da árvore e criou um mundo dentro de outro mundo, será isto a utopia? Nunca desistir? Estará a Guiné preparada para tanta felicidade?”. Aqui podemos relacionar o “mundo dentro de outro mundo”, ao conceito do Todo-Mundo, de Édouard Glissant e que dá nome a este ciclo de cinema, ou seja referente à ideia de um Mundo plural, anti-universal e anti-colonial, constituído por vários mundos e culturas que se relacionam em igualdade, sem a existência de comunidades subalternas. Sendo a Guiné um país pluricultural, dentro de um continente africano imenso e diverso que, por sua vez, está dentro de outro Mundo global. O qual se constituiu por meio da dominação e do estabelecimento de assimetrias o dividem em partes desiguais. Noutros momentos, o deus/espírito errante questiona: “Porque as pessoas se tornam tão más?”
Seguimos a história da Guiné no pós-independência, acompanhando o percurso de Nome que, corrompido e corroído pelo amargor, se tornou num “homem mau” e ambicioso. Sob pretexto de ser compensado pelos seus esforços na guerra, quebra os princípios e valores que o PAICG defendia durante o conflito armado e procura aceder a um estatuto social elevado. Por conseguinte, Nome torna-se um homem da cidade. A aldeia, suas tradições e as árvores de grandes raízes ficam para trás. Nome consegue transformar-se num “Senhor” que atravessa e ocupa, com autoridade, os antigos edifícios e palácios, ou seja, os lugares de poder deixados pela administração colonial portuguesa. Da mesma forma, seguem os seus antigos companheiros de luta que, graças a Nome, obtêm uma posição de privilégio e a “sua parte” do negócio, roubando os bens e recursos que pertencem ao povo guineense. Apenas um dos antigos combatentes (Tó), ferido em guerra, não se junta a Nome e seus comparsas, vigiando-os e acusando-os de ter traído o próprio país e a missão a que se tinham prometido. A personagem renega Nome (homónimo = Tó) e diz-se chamar doravante Tótala (que significa ninguém ou aquele que não tem nome). A personagem encontra-se numa cadeira de rodas, veste-se e usa o mesmo tipo de chapéu e óculos que Amílcar Cabral, relembrando esta figura e tudo o que defendia. A personagem é assassinada no final, como foi o líder da luta, significando, assim, o prenúncio do fim do sonho, da possibilidade de um país livre, cuja política assentaria nos princípios da igualdade, ou seja, denuncia o fim da utopia e sentencia todos os “espíritos”, que acreditaram na luta pelo bem-comum e se sacrificaram na guerra, à errância e à desonra, ao esquecimento.
Não obstante, Sana Na N’hada deixa-nos um momento de esperança, figurados na personagem Nambú, antiga namorada de Nome que ficou muda (significando o silêncio associado ao trauma da violência da guerra e que Sana Na N’Hada se conteve de representar e que considera, de qualquer forma, irrepresentável), depois de lhe terem tirado o bebé durante as convulsões da guerra, e na personagem Quiti, antiga guerrilheira que salvou e adoptou a filha de Nambú e Nome. A criança representa o futuro e esperança da Guiné que sobreviveu graças ao amor de duas mães que lhe deram dois nomes diferentes, indicando-nos, de retorno, que sobrevive a possibilidade de um entendimento conjunto, se assim o entendermos: Poderá o amor salvar o mundo? Questão que nos impele a perguntar também: Poderá o cinema salvar o mundo?
[1] Nindo é um deus “Bijagó”, ligado à natureza que criou o primeiro homem. Este não deverá quebrar as regras ancestrais sob risco de causar desgraças.
Entrevista acessível em: https://filmsenbretagne.org/nome-de-sana-na-nhada-creer-une-histoire-decolonisee-avec-ses-propres-mythes/
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