por Jessica Sérgio Ferreiro
Filme estreado em 1976, Trás-os-Montes leva-nos a percorrer o planalto Mirandês e os quotidianos dos seus habitantes, cujo registo nos dá testemunho de um mundo em vias de extinção. Apesar da recepção fria que este filme recebeu em Portugal, este foi bastante apreciado internacionalmente, inclusive por vultos
do cinema do real. Trás-os-Montes é, indubitavelmente, a prova de um cinema pela arte, ou seja, de uma arte de comunicar e de criar sentido, envolvendo e convocando a comunidade local (atores não profissionais). Apesar dos meios de realização modestos (no interior transmontano, afastado dos centros urbanos e culturais, poucos recursos técnicos e financeiros disponíveis), Margarida Cordeiro e António Reis conseguem criar uma obra que nos transporta para o domínio da imaginação, onde o arcaico e o prosaico se cruzam com o sublime
e o pitoresco. Trás-os-Montes poderia ser categorizado, de forma redutora, como uma docuficção ou uma etnoficção, pela qual retratos de vidas reais nos são apresentados de forma ficcionada. Porém, a estética poética e o lirismo que caracterizam este filme, afasta-o dos documentários e docudramas etnográficos da altura, para se firmar como um cinema de vanguarda, não-convencional, cuja originalidade ainda hoje se faz sentir.
Realizado numa época conturbada, marcada pelo fim da ditadura, não nos remete directamente para um antes ou depois de um momento tão crucial e marcante da história portuguesa. Pelo contrário, a Terra Fria, região localizada no nordeste transmontano, surge como uma realidade paralela, um domínio à parte e não subalterno – um mundo que não se deixa incomodar pela fugacidade dos tumultos da civilização moderna. A imensidão da paisagem transmontana é a protagonista, as planícies e montanhas são habitadas por povoados exíguos que não perturbam a sua imponência magistral. As típicas casas de pedra e os hábitos
que as ocupam ornamentam-na, a par com os sons naturais e as ladainhas entoadas. Por vezes, o filme parece carregar tons nostálgicos e melancólicos (ou talvez este sentimento seja mero efeito provocado no espectador contemporâneo, afastado desta realidade). Os planos longos surgem como pinturas vivas de lugares virginais, cuja candura e simplicidade é transposta para os modos de vida. As crianças têm uma presença forte no filme, reforçando uma ideia de inocência jovial ou de uma liberdade pura, possível entre campos, rios e searas.
A cultura popular é-nos mostrada como lugar de memória e de conhecimento arquissecular, como um ente vivo que atravessa gerações para se pousar em cada corpo que a receba. É composta por práticas, cultos, rituais e labores que compõem os gestos diários que reproduzem e perpetuam uma memória incorporada capaz de resistir à erosão da matéria. Encontra-se presente na tecelagem da lã, na música e danças tradicionais que ocupam os tempos de ócio rural, nas brincadeiras de criança, nas lengalengas e ditados populares, bem como nas típicas lendas transmontanas de princesas mouras encantadas. Por vezes, também se ouve a língua Mirandesa, prova da capacidade de permanência da História oral. A narração e a representação ficcionada ou performativa destas práticas e tradições orais colocam em cena uma identidade transmontana performatizada. A par com estes elementos “invisíveis”, afigura-se a cultura material, tal como o pião de brincar, o velho gira-discos de caixa, os antigos teares, ou, ainda, os potes de ferro, com os quais se cozinha lentamente nas lareiras antigas das casas. O filme também articula arquétipos que nos remetem para um arcaísmo rural, figurado na mulher vestida de negro, no homem de capote transmontano (Capa de Honra Mirandesa), ou ainda no jovem pastor com o seu rebanho. Assim, o tempo ganha outra velocidade, outra dimensão história e sensorial, facilitada tanto pela estrutura e forma (tipos de planos, tempo de imagem, etc.) do filme como pelo conteúdo.
Não obstante, estas visões aparentemente exaltadas ou romantizadas do mundo rural são subtilmente contrapostas com planos que nos contam que a morte coexiste, quando nos são relatados as longas jornas e os perigos do trabalho nas minas, onde, também, as crianças trajadas de adultos dedicam o seu tempo e esforço. Os problemas e dificuldades que afectam as gentes daquela região, bem como o subsequente êxodo crescente que levará à desertificação do interior, são compreensíveis quando se ouve a leitura de uma carta endereçada a um familiar emigrado ou, ainda, no depoimento audível, na segunda parte do filme. Subtilmente, é-nos contado que afinal este “mundo paralelo” faz parte de outro e é igualmente afectado pelas suas convulsões, remetendo-nos, por exemplo, para o conjunto de “Mundos perdidos” que Vittorio De Seta captou ou, ainda,
para o filme O Movimento das Coisas (1985) de Manuela Serra.
Assim, Trás-os-Montes revela-se como um conjunto de contos bucólicos antitéticos ao hipermodernismo industrial, apresentados de forma fragmentada, numa cronologia não-linear, veiculada através de uma poética da imagem que nos faz imaginar para além do imaginário colectivo, ou seja, do cliché, relembrando-nos, contudo, que no idílio coabita a aspereza da realidade.
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