terça-feira, 20 de agosto de 2024

Ana (1982) de António Reis e Margarida Martins Cordeiro



por Cristina Fernandes

A natureza como imemorial casa 

Naqueles dias a neve e o vento eram mais puros, as estrelas mais próximas de nós. 
Sob o teu olhar de mãe, a natureza continuamente se ia recolhendo ao invisível. 

Ana (1982), António Reis e Margarida Cordeiro 

Os filmes de António Reis e Margarida Cordeiro inserem-se numa comunidade com algumas influências reconhecíveis e muitos herdeiros apaixonados; o que eles fazem é cinema. Podemos começar por defender esta verdade necessária. Mas, em rigor, não sabemos bem, ou sabemos cada vez menos, o que se agrega sob a palavra «cinema», por isso a proposição não faz justiça a uma obra cujos pontos de fuga nos levam para muito longe. Quer dizer, eles usam a linguagem primitiva do cinema mas depois estabelecem um diálogo intenso com muitas outras coisas: pintura, música, literatura, e ainda mais o conhecimento da terra e das pedras, dos animais e dos frutos, das estações, das construções das casas ou dos barcos, da vida e da morte — ou seja, nos seus filmes todos os elementos fundamentais da cultura vibram e isso dá-lhes um carácter de objectos raros e preciosos. Como se o cinema fosse um olhar cosmológico. Como se eles fossem feiticeiros[1]. 

Numa entrevista ao Jornal de Letras[2], António Reis disse: «... num filme como o nosso, em que não há psicologia nem simbolismo, tudo está em tudo, a nossa defesa é muito menor, a nossa exigência muito maior e o espectador... Margarida Cordeiro: O espectador tem que contribuir mais...» 

É verdade, a relação tem de ser mútua. Então, antes ainda de começar a falar de Ana, é importante lançar algumas ideias sobre o trabalho exigente desta dupla de cineastas, parar para compreender a sua coesão material e o seu alcance de voo. Trata-se de uma força inédita que não só garante uma enorme profundidade de conhecimento, mas também um tempo prolongado de leitura. Roubando alguns versos de Reis, arrisco dizer que os seus filmes correm como rios, duram com pedras, lançam raízes[3]. E o seu encantamento há-de perdurar pelos séculos, basta dar um passo de aceitação. 

Antes de mais, são filmes exigentes que nos obrigam a entrar na sala com um olhar disponível. Em certa medida parece que estamos a entrar num mosteiro sem tecto, porque cada uma das suas obras põe em prática uma ligação estreita entre o sagrado e o profano, vai ao mais escondido e violento que há na vida. E mesmo para falar e escrever sobre eles, é preciso escolher as palavras mais simples e não seguir nunca uma busca de narrativas ou um interrogatório banal de significações — é outra coisa mais volátil que temos de encontrar. Todas as nossas reflexões serão sempre uma aprendizagem do desconhecido; a gratificação há-de crescer por dentro, na sombra, e muitas vezes muda. 

Não posso falar de Ana, sem fazer a ligação a Trás-os-Montes porque ambos captam o movimento histórico e cultural de um povo e de um território, mas também, ao aproximarem-se do grão mais pequeno, encontram a universalidade do tempo e do espaço. Assim como Kafka ou um poema chinês convivem lado a lado com a história da Branca-Flor, também Rilke nos guia até Miranda do Douro e Bragança para compreender o que é dar vida e enfrentar a morte. Encontrássemos nós também uma pura, contida, estreita parcela de humano, uma faixa nossa de terra fértil Entre rio e rocha![4] É como se os segredos do universo se concentrassem nestas terras agrestes e, por uma estranha alquimia, ficassem gravados numa película que testemunha o mistério que nos envolve desde sempre. 

António Reis dizia que «se olhas para alguma coisa e ela te retribui é porque está lá uma parte de ti». E é isso que acontece nos seus filmes. Há uma parte de nós nesses gestos primordiais que eles registam com um rigor absoluto, nos rituais que nos ligam ao sol e à lua, aos rios e ao vento. Não é preciso sermos daquela terra, porque não se trata só do nordeste de Portugal, não se trata só da presença do homem num lugar duro e esquecido. São as raízes da nossa vida. Uma presença real tremendamente rude e meiga em diálogo com todos os elementos que a rodeiam. 

E então, Ana? Ana é um filme de mistérios: o mistério da vida e o mistério da morte — simultaneamente graves e radiosos. Não há propriamente uma história5, não se trata de uma série de acções encadeadas de forma lógica, mas sequências de planos inesperados e poderosos que atingem os nossos sentidos e o nosso subconsciente[6]: a rapariga vestida de branco com a raposinha (kitsune?) nos braços; os homens a comer morangos à porta da igreja românica de Algosinho; a cor vermelha que passa pelo filme criando um novo tipo de raccords; a gravidade do azul no rosto de Ana; o tapete estendido ao vento, os números do Circo Cardinali numa gruta que parece saída das Mil e Uma Noites; a menina que leva uma garrafa (não se sabe de onde vem nem para onde vai) e pára um pouco junto ao homem morto deitado num caixão. Estes fragmentos afectam o nosso sistema nervoso como uma vertigem — para as compreendermos temos de desligar o nosso lado mais inquisitivo, temos de ver sem medo. Como explica Robert Bresson: [trata-se de um] «filme de cinematógrafo, onde a expressão se obtém por relações de imagens e sons (...). Que não analisa nem explica. Que recompõe.» 

Inicialmente o filme chamava-se Dezembro (as filmagens começaram no inverno e prolongaram-se pela primavera e verão), depois Ana e Alexandre e por fim apenas Ana, e já nessa mudança podemos compreender o modo como os dois trabalham, depurando ao máximo todos os elementos. Assim, ficamos com o nome da avó e da neta, uma palavra simétrica que não tem fim. E o primeiro plano é uma panorâmica vertical do céu para a terra — o princípio da aventura humana. Seguem-se segmentos, blocos extraordinários, porque são ao mesmo tempo austeros e sumptuosos, cheios de ressonâncias. Não te negues aos prodígios. Ordena à lua, ao sol. Desencadeia os raios e os trovões[7]. 

A representação do ritual da amamentação com a ama sentada num trono (Godard filmara assim O recém-nascido, de George de La Tour, um ano antes — um filme desconhecido, quase perdido) é perfeita: ela coberta por um manto, com uma almofada vermelha aos pés e o menino envolto numa manta azul. A narração do eclipse: a luz do fim da tarde faz a terra dourada, ouve-se o vento, a câmara inicia uma panorâmica lenta de reconhecimento para a direita até encontrar a avó e a neta sentadas no campo, e aí fica um pouco enquanto a avó conta o desassossego daquela noite súbita, o aperto no coração. Fazia frio. Todo o silêncio caíra sobre o mundo... Depois a câmara regressa ao ponto inicial, num nesses movimentos lassos que fazemos quando queremos abarcar uma paisagem por inteiro. Ou a aprendizagem de Alexandre tão natural e tão vasta: o prisma decompõe as cores, mercúrio é um metal líquido que não se mistura mas também o deus mensageiro dos romanos; e essa aula magnífica e longa em que Octávio lhe explica o que é a Mesopotâmia — uma terra entre rios, fértil, propícia à vida — e fala das jangadas de odres para atravessar a água. Nessa altura nós percebemos a profundidade da palavra passagem. E os pássaros dos sonhos de Alexandre são um auspício. Assim como a cena de Ana na barca com a cabra ou as rachadelas nas paredes (que nunca mais se esquecem) ou o sangue nas suas mãos — tudo é prenúncio de morte. Já perto do fim, Ana está deitada na cama e diz à neta: O menino? Não te esqueças de dar de comer à Miranda. Deita-lhe feno e uma mão cheia de centeio. São as suas última palavras. 

Todos estes momentos são quadros universais e eternos; o que está a acontecer perante os nossos olhos é um impulso vital, um verbo omnipresente. Paradoxalmente, Ana tem também esse carácter das grandes obras abstractas que, sem seguir uma trama convencional, nos oferecem conceitos que definem o que é o nascimento, a mudança das estações, o crescimento dos frutos e das crianças, a morte. E não há uma classificação vertical, tudo é uma dádiva, tudo emana do mesmo gesto avassalador e horizontal de alegria. 

A alegria nos filmes de António Reis e Margarida Cordeiro é um movimento inteiro e arrebatador. Ana sabe que a morte faz parte de um ciclo natural, assemelha-se a uma travessia num barco frágil ou às folhas que amarelecem e caem das árvores — uma passagem. A renovação da terra é uma das coisas mais belas que existe (o belo não é senão o começo do terrível[8]) e deve ser festejada. Por isso a última imagem do filme é um lago, circular como o nome Ana. Tudo refloresce.

[1] Certeiro, Jacques Rivette classificou o cinema de António Reis e Margarida Cordeiro como «pré-socrático». 
[2] Feita por Pedro Borges em Maio de 1985. 
[3] Poemas Quotidianos, de António Reis. Edições Tinta-da-China, Julho de 2017.
[4] Dos últimos versos da Primeira Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke. Tradução de Paulo Quintela. Inova, 1969. 
[5] Mas reparem na beleza e simplicidade da sinopse: Naqueles dias... A lenda do leite na casa sombria. Tempo interior. Quase silêncio. Luz. A natureza como imemorial casa exterior. Inverno. O sangue recolhido nas duas mãos, mãe Ana. (Três gerações: uma avó, um filho cientista que vive na cidade e passa férias na aldeia, duas crianças – neto e neta. Harmonia só quebrada com a morte de Ana...)
[6] Numa entrevista ao programa Ecran (RTP), António Reis diz: Há o menino e a avó porque também há... O nosso rigor também vai a uma fraga e a uma erva. Se quiseres, a uma sombra e a uma luz. Não damos privilégio ao menino e à avó. Uma árvore tem o mesmo privilégio. Uma seara tem o mesmo privilégio
[7] Notas sobre o Cinematógrafo, de Robert Bresson. Tradução de Pedro Mexia. Porto Editora, 2000. 
[8] Dos primeiros versos da Primeira Elegia de Duíno, de Rainer Maria Rilke. Op. Cit. Rilke é um poeta essencial na relação entre Reis e Cordeiro e As Elegias de Duíno talvez sejam o livro mais esclarecedor sobre Ana.



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