terça-feira, 6 de agosto de 2024

Jaime (1974) de António Reis



por António Cruz Mendes

A notoriedade de Jaime, logo depois da sua estreia considerado como uma referência fundamental do Cinema Novo na área do documentário, deve-se, tanto à sua qualidade cinematográfica, como ao facto de ter revelado a obra artística, até então desconhecida, de um doente do Hospital Miguel Bombarda. 

Em 1974, quando realizou este filme, António Reis era já um homem com uma estreita ligação ao cinema. Membro activo do Cineclube dos Porto, tinha sido assistente de realização de Manoel de Oliveira no Acto da Primavera (1963) e tinha realizado duas curtas-metragens, Painéis do Porto (1963) e Do Céu ao Rio (1964), em parceria com o produtor César Guerra Leal, que também serão exibidas nesta sessão do Lucky Star – Cineclube de Braga. Margarida Cordeiro, psiquiatra, trabalhava no Miguel Bombarda quando descobriu uma grande quantidade de desenhos a lápis e esferográfica realizados por Jaime Fernandes, um doente já falecido que esteve aí internado grande parte da sua vida. Jaime é o primeiro passo de uma fecunda colaboração entre os dois da qual nasceriam mais três filmes, obras telúricas e poéticas que, neste ciclo, teremos a oportunidade de visualizar. 
 
Jean Dubuffet criou o conceito de “arte bruta” para designar a produção artística de pessoas sem qualquer formação académica, totalmente alheados do “mundo da arte”, e que, por esse motivo, seriam capazes de transmitir com uma autenticidade mais crua e directa os sentimentos e visões que povoavam o seu mundo interior. Muitos desses artistas eram indivíduos alienados e os seus trabalhos manifestam de uma forma muito expressiva a sua complexa e perturbada visão do mundo. Durante muito tempo, a obra artística de Jaime Fernandes foi sobretudo conhecida através do filme de António Reis. Mas, em 1980, a Fundação Calouste Gulbenkian expôs setenta e quatro dos seus desenhos e, um ano depois, cinquenta desenhos de Jaime Fernandes figuraram na Bienal de S. Paulo na exposição Arte Incomum. Mais recentemente, em 2023, o Centro de Arte Oliva (S. João da Madeira) reuniu numa grande exposição muitas obras suas que, entretanto, se tinham dispersado por múltiplas colecções públicas ou particulares. 

Jaime Fernandes nasceu na aldeia de Barco, na Covilhã. Diagnosticado como doente esquizofrénico quando tinha 38 anos, viveu mais de 30 anos em regime de internamento hospitalar. Morreu em 1969, com 69 anos de idade. Poucos anos antes, começou inesperadamente a desenhar, com esferográficas coloridas, densas teias de linhas donde emergem figuras antropomórficas ou de fantásticos animais, cujos olhos, sempre representados em posição frontal, nos perscrutam e interrogam. 

O filme de António Reis organiza-se como que por camadas, onde se sucedem imagens do austero ambiente hospitalar, feito de silêncios e solidões, com as da terra de Jaime, onde, em condições de um grande primitivismo e pobreza, os seus familiares prosseguem a sua vida. E é sobre esse pano de fundo que nos são dadas a ver as imagens dos seus desenhos, bem como das longas cartas que escrevia à sua mulher e que esta confessa mal perceber. Nuns e noutros, Jaime revela os seus sonhos, tecidos entre as memórias de uma vida perdida e a experiência da sua reclusão hospitalar. São tentativas patéticas de lhe dar um sentido e, ao mesmo tempo, uma demonstração de como a arte pode surgir como força libertadora no seio das mais terríveis circunstâncias.



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