quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Rosa de Areia (1989) de Margarida Cordeiro e António Reis



por João Palhares

Antes de conhecer Margarida Cordeiro, António Reis foi membro muito activo do Cineclube do Porto, publicando também ao longo desse tempo nove livros de poemas: Chamas, Luz, Roda de Fogo, Ronda do Suão, Poemas do Cais, Poemas do Escritório, Ode à Amizade, Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos. Publicados durante os anos quarenta e cinquenta entre a Portugália, a Tipografia do Carvalhido e o próprio autor, estão há décadas esgotados, tendo os primeiros sete sido inclusivamente deserdados por Reis, que os apagou da sua bibliografia, e apenas Poemas Quotidianos e Novos Poemas Quotidianos foram recentemente reunidos num único volume pela Tinta da China, também já esgotado. 

No Cineclube do Porto, Reis investigou teoria do cinema com amigos e colegas e juntos fundaram a Secção de Cinema Experimental, acabando por produzir uma importante média-metragem, Auto da Floripes, transposição cinematográfica desse auto encenado, representado, aprendido e vivido por muitos séculos pelas gentes do lugar das Neves, perto de Viana do Castelo, entroncamento partilhado das freguesias de Barroselas, Mujães e Vila de Punhe. O trabalho do colectivo, que incorporava também um pequeno prelúdio documental que acompanhava alguns dos intérpretes do Auto da Floripes nos seus afazeres de todos os dias, impressionou Manoel de Oliveira, que chamou António Reis para o assistir na realização do Acto da Primavera, rodado na aldeia da Curalha, em Trás-os-Montes, nos anos sessenta e tido por muitos como a grande linha de demarcação ou a grande fissura que todo o novo cinema português teria de atravessar sob pena de morte. Uns anos depois, Reis assina os diálogos de Mudar de Vida, de Paulo Rocha, já marcados por uma atenção fora do comum aos ritmos e às entoações, caros a Reis por ser de perto da zona e conhecer a sua fala, co-realizando ainda com César Guerra Leal Painéis do Porto e Do Céu ao Rio, duas curtas-metragens encomendadas respectivamente pela Câmara Municipal do Porto e a Hidro-Eléctrica do Cávado. 

Transmontana, Margarida Cordeiro estudou Medicina e especializou-se em Psiquiatria em Lisboa, começando a trabalhar no hospital Miguel Bombarda em Lisboa poucos meses depois de Jaime Fernandes, paciente no hospital, ter falecido. Conhecera António Reis no Porto uns anos antes e este encontro inaugurou aquela que é sem dúvida uma das obras mais especiais e fabulosas do cinema português. Um dia, Cordeiro reparou num desenho que a princípio confundiu com uma reprodução, de tão bom que era. Fazendo algumas perguntas, descobriu que era original e fora desenhado por um antigo paciente, Jaime Fernandes, nascido no Barco, na Covilhã, e internado aos 38 anos, que começara a pintar febrilmente apenas aos 65 anos e daí até à morte, quatro anos depois. O casal reuniu vários dos seus desenhos e fez-se ao trabalho, inspirado também pelo talento do pintor, falando com a família e utilizando uma truca, máquina de efeitos de trucagem que lhes permitia aproximar-se perpendicularmente dos desenhos que esticavam entre duas transparências. 

Jaime, num primeiro contacto, não pode deixar de impressionar pela sua inventividade na ligação entre sons e imagens. O trecho em que aparece “St. James Enfermary” de Louis Armstrong não nos abandonará nunca a retina pelo jogo incessante que é praticado entre o ritmo da música e o ritmo dos planos. Um jogo perigoso que Reis e Cordeiro souberam solucionar prodigiosamente. Trás-os-Montes é fruto de um labor delicado, o princípio de uma belíssima aventura pelo Trás-os-Montes de Margarida Cordeiro que já se dá sob o signo da despedida, ficando a ressoar o comboio final e os seus apitos e os seus vapores que irrompem pelos últimos planos e o longo adeus da menina que é longo porque assim aconteceu à mãe de Cordeiro, Ana Maria Martins Guerra, que ficou meia hora a acenar e a acenar talvez por não se conseguir convencer em criança de que o pai se ia embora para muito longe. É ela a intérprete principal do filme seguinte, Ana, poema à terra que gradua as suas tonalidades como as estações do ano equiparando-as às estações da vida, facto sublinhado pela sequência maravilhosa da caminhada da avó pelas florestas e em que a sua sombra chega à altura das das árvores que a amparam. O ser humano como igual dos verdes campos, de uma floresta ou de uma montanha, as colinas ao longe sempre trabalhadas em pano de fundo pictórico com os primeiros planos dos corpos e dos rostos dos homens. Chave possível para um poema de Wallace Stevens que sempre achámos enigmático, “There are men of the East, he said, / Who are the East. / There are men of a province / Who are that province. / There are men of a valley / Who are that valley.” 

Nos final dos anos setenta, António Reis começou a dar aulas no Conservatório Nacional, hoje Escola Superior de Teatro e Cinema. As suas aulas funcionavam a partir de vinte e dois filmes fundamentais da história do cinema: Intolerância de David Wark Griffith, Fausto de Friedrich Wilhelm Murnau, A Paixão de Joana d’Arc de Carl Theodor Dreyer, O Vento de Victor Sjöström, A Linha Geral de Sergei M. Eisenstein & Grigori Aleksandrov, Alexandre Nevski de Eisenstein, O Mundo a Seus Pés de Orson Welles, O Quarto Mandamento de Welles, Dia de Cólera de Dreyer, Alemanha, Ano Zero de Roberto Rossellini, Stromboli de Rossellini, O Rio Sagrado de Jean Renoir, Viagem em Itália de Rossellini, Johnny Guitar de Nicholas Ray, Fugiu um Condenado à Morte de Robert Bresson, A Desaparecida de John Ford, O Carteirista de Bresson, O Acossado de Jean-Luc Godard, O Gosto do Saké de Yasujiro Ozu, O Deserto Vermelho de Michelangelo Antonioni, Marnie de Alfred Hitchcock e Pedro, o Louco de Godard. 

Pode por vezes ser má ideia invocar demasiado cinema para falar do próprio cinema. Pode-se entrar num jogo que se ache proveitoso e motivador no próprio instante mas que no final perde de vista os resultados reais e concretos daquilo que se quer descrever. Só que talvez pouco se escreva das relações dos filmes de Margarida Cordeiro e António Reis com o próprio cinema e os filmes que amam. Os vermelhos de Ana podem ter algo que ver com os vermelhos de Marnie, outro filme com o nome da sua heroína e que equilibra as tonalidades em função das tribulações da sua personagem. O homem e as estações, como credo, e os homens e a paisagem, como paleta, não estarão certamente muito longe das semelhantes posturas de Ozu, Renoir ou Ford para com o seu trabalho. E é aí que os filmes de Reis e Cordeiro estão ou deviam estar, no grande firmamento das obras que formam o nosso inconsciente e os nossos sonhos, a constelação a que se convencionou chamar um dia de história do cinema. 

A procissão com a bandeira de Rosa de Areia vem directamente das batalhas de Alexandre Nevsky, enquadrando o céu por inteiro. Em Marnie, quando a personagem de Sean Connery se tem de dedicar a leituras durante o cruzeiro de lua de mel, acaba por falar à esposa de algo que parece uma flor, no Quénia, mas se transforma numa nuvem de insectos quando nos aproximamos e lhe tentamos tocar. Uma rosa de areia será algo semelhante? Aquilo que é belo esconde sempre um crime fundacional? Quando pensamos que estamos próximos de uma revelação ou de algo que se possa equiparar à felicidade, a realidade há-de fazer sempre das suas e reduzir os nossos sonhos a poeira? Quem são as crianças que sempre ligam ou comentam os episódios de fome, de sede e de sofrimento dos nossos antepassados como se de um coro grego se tratasse? É possível chamar almas errantes, dizer-lhes para voltar “dos montes, / Da floresta, / Dos caminhos / Ou das fontes, / Das sombras / Ou das névoas, / Dos lodos / Ou do fundo do mar.”? Dar-lhes algum descanso e a nós na última das travessias? Quem decidiu que um porco pode ser acusado de homicídio e que o seu dono deve pagar as cento e setenta e cinco libras e oito soldos de despesa da execução? Como se procura um lugar puro declinado na areia, quando as constelações alteram o vocábulo? Em dezenas de milhares de anos, ou desde “o crepúsculo inicial da história”, ainda não se encontrou melhor forma de lidar com quem sofre e é obrigado a ajoelhar-se e a rastejar para viver que não seja pegar num cassetete e castigar-lhes os corpos até eles também se transformarem em rosas de areia? Será possível fazer um filme cujo fio condutor seja apenas o plano, que por sua vez cria outro plano que por sua vez cria outro plano que por sua vez cria outro plano até se transformar nesse sonho impossível, desmedido e utópico de um cinema sem montagem aparente?




Post scriptum digital: como é bom acontecer em sessões com convidados envolvidos na produção dos próprios filmes, soube-se que não é consensual o envolvimento de António Reis na produção e na rodagem do Auto da Floripes, bem como o convite de Manoel de Oliveira a Reis dever-se ao facto de ter visto essa média-metragem, pois as produções foram praticamente concorrentes. Os filmes nas aulas de António Reis também variavam ao longo dos anos, dependendo às vezes da disponibilidade dos próprios arquivos do Conservatório Nacional. A história do cinema português continua a ser feita. Os nossos agradecimentos ao Manuel Mozos e ao Carlos Gonçalo pela sua disponibilidade e pelos seus testemunhos.

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