por João Palhares
Os autos são uma forma teatral que surgiu em Espanha, na Idade Média, por volta do século XII. Eram integrados em festividades religiosas e encenados dentro das próprias igrejas ou nas respectivas portas de entrada e em volta dos pátios, sendo posteriormente apropriados pelas populações (e também proibidos pela igreja, a dada altura, devido à linguagem considerada grosseira) e representados em feiras, mercados ou praças públicas. Entre o sagrado e o profano, tinham propósitos satíricos e moralizadores, criticando tudo e todos, do camponês mais miserável ao mais opulento dos cardeais, sendo compostos e encenados também por famosos escritores e dramaturgos portugueses e castelhanos como Gil Vicente (c. 1465-c. 1536), Luís de Camões (c. 1524-c. 1580), Dom Francisco Manuel de Melo (1608-1666) e Juan de la Encina (1468-1529), Juan de Timoneda (c.1520-1583), Lope de Vega (1562-1635), José de Valdivielso (1565-1638) ou Pedro Calderón de la Barca (1600-1681).
O Auto da Floripes, representado todos os anos no Largo das Neves da freguesia de Nossa Senhora das Neves, a 5 de Agosto, insere-se nesta tradição e foi transmitido oralmente durante vários séculos até ser fixado em texto em 1940 por Leandro Quintas Neves, a partir de recolhas da tradição oral e do romance de cavalaria “História do Imperador Carlos Magno e dos Doze Pares de França”, traduzido para português por Jeronymo Moreira de Carvalho em 1814. No entanto, a representação deste auto, devido às semelhanças que partilha com “Os sete infantes de Lara”, outro auto medieval fixado em texto na “Crónica Geral de Espanha” de Alfonso X e representado até ao século XX na zona de Miranda do Douro, pode remontar ao século XIII. A estória envolve dois exércitos em contenda, um de cristãos e outro de turcos, centrando-se mais especificamente no duelo entre o cristão Oliveiros e o turco Ferrabraz, e na figura conciliadora de Floripes, irmã de Ferrabraz, que solta os prisioneiros inimigos e permite a vitória do exército de Carlos Magno, convertendo-se no final ao cristianismo junto com os seus irmãos turcos.
Henrique Alves Costa, dirigente do Cineclube do Porto de finais dos anos 40 a inícios dos anos 60, conheceu o auto através da mulher. “Minha mulher,” escreveu ele no programa da sessão nº 420 do Cineclube do Porto, “falava-me frequentemente de uma representação popular coreo-dramática a que muitas vezes tinha assistido no lugar das Neves (distrito de Viana do Castelo) por ocasião da romaria que ali se realiza todos os anos nos primeiros dias de Agosto.
“Um ano (foi em fins de Julho de 1949), estávamos nós em férias em Moledo do Minho, voltou a falar-se nisso, já não me lembro a que propósito. Encontravam-se connosco António Pedro, Rui Feijó e João José Cochofel e de tal sorte minha mulher conseguiu espicaçar a nossa curiosidade que logo ficou decidido irmos todos, dali a dias, à festa das Neves.
“Foi então que vi pela primeira vez o “Auto da Floripes”.
“E do que vi não tardei a trazer circunstanciado relato para a revista Vértice [nº 73, Setembro de 1949], no que me acompanhou João Cochofel escrevendo, para o mesmo número, uma nótula sobre o valor espectacular do Auto da Floripes. Por iniciativa de ambos, mais tarde se publicou naquela revista [nº 102, Fevereiro de 1952] o texto do Auto (com a completa indicação da movimentação dos personagens), tal como havia sido pacientemente recolhido pelo etnógrafo local Leandro Quintas Neves.”
O auto encenado na Senhora das Neves tinha como palco um estrado, onde estava dum lado o exército dos cristãos e do outro o dos turcos, tendo cada um deles uma banda filarmónica atrás das suas fileiras. Durante a representação, encontravam-se a meio do estrado para lutar, parlamentar, cantar ou dançar. “Deve dizer-se que, para quem vê representar o Auto pela primeira vez, sem do seu enredo ter algum conhecimento, ” chamou Alves Costa a atenção no mesmo texto da sessão nº 420, “não é muito fácil entender o que se diz e o que se passa. Pela maneira como falam ou como cantam, pela maneira como pronunciam ou entoam as palavras, os comediantes ouvem-se mal e das suas falas grande parte não se percebe, se já não se conhece o texto. Só espectador que estiver muito bem colocado e muito próximo do estrado acabará por habituar o ouvido ao fim de algum tempo (a representação dura duas horas bem puxadas) e poderá, então, entender melhor as tiradas dos personagens principais. Por isto se pode calcular o “bico de obra” que foi a gravação das falas, com os meios rudimentares de que dispunham os amadores que se arrojaram a registar e sintetizar, num filme, o Auto da Floripes.”
Já no final da representação, canta-se “já se renderam os turcos, já se acabou toda a guerra. Nossa senhora das Neves, sois guia de toda a terra.” O Auto da Floripes foi um marco importante na missão etnográfica do cinema e das artes portuguesas durante os anos 60 e 70, continuando o trabalho de Fernando Lopes-Graça, António Campos e Michel Giacometti e antecipando o de Manoel de Oliveira, António Reis, Margarida Cordeiro e Manuela Serra. Antes da encenação do auto, há uma sequência de abertura que situa o lugar das Neves e os intérpretes da Floripes, embrenhados nos seus trabalhos no campo ou em casas de pasto. Na tradição dos antigos autos e até do teatro isabelino, Floripes é interpretada por um homem, António Miranda, que foi o último a fazê-lo. Em 1962, foi pela primeira vez interpretada por uma mulher, Maria Eulalia Viana, e desde aí a esta parte tem sido assim. Outras mudanças de maior incluem o estrado, que agora é um palco tradicional, e a ausência das armas de fogo.
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