quinta-feira, 18 de abril de 2024

Torre Bela (1975) de Thomas Harlan



por António Cruz Mendes

O“25 de Abril” não foi só o golpe militar que pôs fim à ditadura, mas também, e sobretudo, como dizia Ary dos Santos, “as portas que Abril abriu”, essa vaga imensa de iniciativas populares que desenharam possibilidades de construção de uma sociedade diferente daquela em que se viveu durante tantos anos – uma sociedade mais livre, mais democrática, mais justa, mais solidária. 

Uma revolução é sempre um acto fora-da-lei. Faz-se para abolir as leis que regiam o regime deposto e inaugura um período onde as leis que hão-de substituir aquelas que foram revogadas ainda não foram feitas. Uma revolução é um tempo em que aquilo que faz lei é a vontade dos revolucionários, um tempo onde tudo parece ser possível. 

Foi nesse tempo que um grupo de camponeses pobres decidiu ocupar a imensa e desaproveitada herdade da Torre Bela. O filme de Thomas Harlan documenta essa extraordinária aventura levada a cabo por trabalhadores sem instrução que ousam desafiar tradições ancestrais, tomar nas suas próprias mãos o destino das suas vidas e inventar novas formas de decidir colectivamente o seu futuro. 

A ocupação da herdade levanta problemas e origina discussões. Como se forma uma cooperativa? Quem passa a ser o dono das terras ocupadas? Como é que a propriedade vai ser gerida? Como vai se remunerado o trabalho dos cooperantes? Que relação se vai estabelecer entre eles e as autoridades locais e nacionais? Quem vai cozinhar as refeições dos que trabalham nos campos? Tudo se debate, muitas vezes de uma forma acalorada, tantas vezes de uma forma confusa. Não existe nenhum guião processual pré- definido, são novas formas de decisão democrática que estão a ser inventadas. Estamos perante um caso de democracia directa ou participativa. Quais são as suas virtudes, quais são as suas limitações? 

O filme coloca-nos diante de muitas questões. O direito à propriedade é um direito absoluto ou um direito limitado? E, se tem limites, que limites são esses? A quem deve pertencer a terra, a quem a trabalha ou a quem a herdou? E a enxada que um trabalhador comprou, é dele ou da cooperativa que se está a formar? E o “palácio” dos Duques de Lafões, a quem pertence? 

Terão os camponeses o direito de o ocuparem, de dormir nele, de prepararem nas suas cozinhas as suas refeições, ou não? E os objectos pessoais do Duque e da sua família, as suas mobílias, as suas roupas, os seus livros? Sobre tudo isto, as opiniões dos camponeses dividem-se e o realizador recusa-se a tomar partido. As cenas que observamos não foram encenadas, mas filmadas em tempo real. Aparentemente, a câmara limitou-se a registar os acontecimentos e as controvérsias. Mas será realmente possível essa “objectividade” que o chamado “cinema verdade” reclama para si? Temos a sensação que aqueles que participam no filme ignoram a presença do realizador, mas será de facto assim? E qual terá sido o critério que presidiu à montagem das cenas filmadas? 

Torre Bela é um filme que se situa nesse espaço ambíguo entre o documentário cinematográfico e o cinema militante, mas é também essa ambiguidade que faz dele um documento histórico, a marca de um tempo onde tudo, mesmo as mais fantásticas utopias, artísticas ou sociais, pareciam realizáveis. 

O filme termina de uma forma um tanto abrupta com a informação de que, no dia 1 de Dezembro de 1975, a herdade foi devolvida aos seus antigos donos e que os responsáveis pela ocupação foram incriminados e presos, sem explicitar as circunstâncias e razões políticas que explicam esse fim. Entretanto, mais recentemente, a herdade da Torre Bela, que já não pertence ao Duque de Lafões, voltou a ser notícia. Em 2020, realizou-se aí uma caçada que terminou com a morte de centenas de veados. Sendo uma herdade vedada, os animais não tinham por onde fugir à perseguição dos caçadores. Mais do que uma caçada, tratou-se de uma verdadeira chacina que indignou a opinião pública. Mais recentemente, soube-se que muitas centenas de sobreiros e azinheiras, árvores protegidas, vão ser abatidas para que se instale aí uma imensa central fotovoltaica. 

O tempo dos acontecimentos que o filme documenta pode parecer-nos hoje irremediavelmente vencido. Mas, talvez não seja assim. As utopias mesmo quando não se realizam, não morrem. Reaparecem teimosamente sempre que há injustiças. Talvez como um horizonte difícil de alcançar, mas que continua presente, acompanhando a humanidade pelos séculos fora.



Sem comentários:

Enviar um comentário