sexta-feira, 26 de abril de 2024

Continuar a Viver ou Os Índios da Meia Praia (1977) de António da Cunha Telles



por António Cruz Mendes

António da Cunha Telles foi um elemento destacado do Cinema Novo, movimento inspirado na Nouvelle Vague francesa e no neo-realismo italiano que, nos anos 60, veio renovar o cinema português lançando um novo olhar sobre o nosso quotidiano, despindo-o da visão pitoresca e idealizada que caracterizava o cinema promovido pelo Estado Novo. A sua intervenção fez-se notar como produtor (produziu, por exemplo, em 1963, Os Verdes Anos, a primeira longa-metragem de Paulo Rocha e uma obra marcante do início do Cinema Novo português), como distribuidor (foi responsável pela divulgação em Portugal da obra de Eisentein, de Jean Vigo, de Glauber Rocha e de muitos outros notáveis realizadores) e como realizador (O Cerco, de 1970). 

Com o 25 de Abril, o Cinema Novo sofre um novo impulso e inicia uma segunda fase da sua existência. Surgem, então, alguns documentários que, na linha do “cinema verdade”, procuram fixar as experiências e transformações então vividas, cruzando uma perspectiva etnográfica com um compromisso militante. É com esse propósito que António da Cunha Telles filma, entre 1975 e 1976, Continuar a Viver – Os Índios da Meia-Praia

O filme inicia-se com um plano de pescadores que arrastam para a praia uma rede onde saltam pequenos peixes. Seguem-se as imagens de um grupo de pessoas que transportam às costas uma barraca. As apresentações estão feitas: são os “índios da meia-praia”, uma comunidade de pescadores pobres que vivem em barracas numa praia e Lagos, no Algarve. 

Canta José Afonso: “Quem aqui vier morar / Não traga mesa nem cama / Com sete palmos de terra / Se constrói uma cabana”. 

Quem são eles? Vários depoimentos informam-nos donde vieram e das esperanças que os trouxeram até ali. Ainda José Afonso: 

De Monte-Gordo vieram / Alguns por seu próprio pé / Um chegou de bicicleta / Outro foi de marcha à ré”. 

São proprietários de pequenos barcos e confrontam-se com a abissal diferença entre os preços por que vendem o pescado e os preços por que são vendidos os mesmos peixes no mercado, aos consumidores. “Tu trabalhas todo o ano / Na lota deixam-te mudo / Chupam-te até ao tutano / Levam-te o couro cabeludo”. 

Pouparam tostões para poderem comprar embarcações um pouco maiores do que aquelas com que começaram a sua vida. As barracas de colmo onde habitavam foram sendo substituídas por outras de madeira, mas a pobreza continua a pesar sobre eles como uma maldição. O filme revela-nos o seu quotidiano, as crianças que brincam na areia e os homens que se dividem entre os trabalhos do mar e o conserto das redes. 

Com o 25 de Abril, a pobreza permanece, mas novas perspectivas se abrem. “Continuamos pobres, mas estamos mais contentes”, diz-nos um velho pescador. Apoiados pelo SAAL (Serviço Ambulatório de Alojamento Local) poderão finalmente abandonar as barracas e viver em casas com outras condições. Forma-se uma associação de moradores. Não há ainda dinheiro, mas um empréstimo de 45 contos permite- lhes começar os trabalhos. O Fundo de Fomento da Habitação financia as obras. Para que os seus custos sejam mais reduzidos e para que elas se possam iniciar de imediato, os próprios moradores disponibilizam-se para trabalhar na construção das casas. Trabalham nos seus tempos livres, homens e mulheres de todas as idades. 

Eram mulheres e crianças / Cada um c’ o seu tijolo / ‘Isto aqui era uma orquestra’ / Quem diz o contrário é tolo”. 

Realizam-se as primeiras eleições democráticas. Como se vota? Em quem se deve votar? As questões políticas atravessam-se no caminho dos “índios da meia-praia” e o barco da esperança parece ir despedaçar-se contra as duras rochas da realidade. 

Mandadores de alta finança / Fazem tudo andar pra trás / Dizem que o mundo só anda / Tendo à frente um capataz”. 

Mas, apesar de todos os problemas, das dúvidas e desavenças, as obras avançam e as novas habitações começam a ganhar forma. Porém, de que vale ter uma casa se não se tem nada para pôr lá dentro? Junto à costa, o peixe começa a escassear e, no alto mar, mandam os grandes arrastões. As pequenas embarcações não podem concorrer com eles... Surge a hipótese dos pescadores, unidos numa cooperativa, poderem comprar um barco com outras dimensões. 

O filme, que se iniciou com uma rede de peixe miúdo que se puxava para a praia, termina com as imagens de uma traineira que navega pelo mar fora. A quem pertence? Para onde se dirige? O futuro é incerto e problemático, mas, como canta José Afonso: 

E se a má língua não cessa / Eu daqui vivo não saia / Pois nada apaga a nobreza / Dos índios da Meia- Praia”.



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