por António Cruz Mendes
António da Cunha Telles foi um elemento destacado do Cinema Novo, movimento inspirado na Nouvelle Vague francesa e no neo-realismo italiano que, nos anos 60, veio renovar o cinema português lançando um novo olhar sobre o nosso quotidiano, despindo-o da visão pitoresca e idealizada que caracterizava o cinema promovido pelo Estado Novo. A sua intervenção fez-se notar como
produtor (produziu, por exemplo, em 1963, Os Verdes Anos, a primeira longa-metragem de Paulo Rocha e uma obra marcante do início do Cinema Novo português), como distribuidor (foi responsável pela divulgação em Portugal da obra de Eisentein, de Jean Vigo, de Glauber Rocha e de muitos outros notáveis
realizadores) e como realizador (O Cerco, de 1970).
Com o 25 de Abril, o Cinema Novo sofre um novo impulso e inicia uma segunda fase da sua
existência. Surgem, então, alguns documentários que, na linha do “cinema verdade”, procuram fixar as experiências e transformações então vividas, cruzando uma perspectiva etnográfica com um compromisso
militante. É com esse propósito que António da Cunha Telles filma, entre 1975 e 1976, Continuar a Viver –
Os Índios da Meia-Praia.
O filme inicia-se com um plano de pescadores que arrastam para a praia uma rede onde saltam
pequenos peixes. Seguem-se as imagens de um grupo de pessoas que transportam às costas uma barraca. As apresentações estão feitas: são os “índios da meia-praia”, uma comunidade de pescadores pobres que vivem em barracas numa praia e Lagos, no Algarve.
Canta José Afonso: “Quem aqui vier morar / Não traga mesa nem cama / Com sete palmos de terra / Se constrói uma cabana”.
Quem são eles? Vários depoimentos informam-nos donde vieram e das esperanças que os trouxeram até ali. Ainda José Afonso:
“De Monte-Gordo vieram / Alguns por seu próprio pé / Um chegou de bicicleta / Outro foi de marcha à ré”.
São proprietários de pequenos barcos e confrontam-se com a abissal diferença entre os preços por que vendem o pescado e os preços por que são vendidos os mesmos peixes no mercado, aos consumidores. “Tu trabalhas todo o ano / Na lota deixam-te mudo / Chupam-te até ao tutano / Levam-te o couro cabeludo”.
Pouparam tostões para poderem comprar embarcações um pouco maiores do que aquelas com que começaram a sua vida. As barracas de colmo onde habitavam foram sendo substituídas por outras de
madeira, mas a pobreza continua a pesar sobre eles como uma maldição. O filme revela-nos o seu quotidiano, as crianças que brincam na areia e os homens que se dividem entre os trabalhos do mar e o conserto das redes.
Com o 25 de Abril, a pobreza permanece, mas novas perspectivas se abrem. “Continuamos pobres, mas estamos mais contentes”, diz-nos um velho pescador. Apoiados pelo SAAL (Serviço Ambulatório de Alojamento Local) poderão finalmente abandonar as barracas e viver em casas com outras condições. Forma-se uma associação de moradores. Não há ainda dinheiro, mas um empréstimo de 45 contos permite- lhes começar os trabalhos. O Fundo de Fomento da Habitação financia as obras. Para que os seus custos sejam mais reduzidos e para que elas se possam iniciar de imediato, os próprios moradores disponibilizam-se para trabalhar na construção das casas. Trabalham nos seus tempos livres, homens e mulheres de todas as idades.
“Eram mulheres e crianças / Cada um c’ o seu tijolo / ‘Isto aqui era uma orquestra’ / Quem diz o contrário é tolo”.
Realizam-se as primeiras eleições democráticas. Como se vota? Em quem se deve votar? As questões políticas atravessam-se no caminho dos “índios da meia-praia” e o barco da esperança parece ir despedaçar-se contra as duras rochas da realidade.
“Mandadores de alta finança / Fazem tudo andar pra trás / Dizem que o mundo só anda / Tendo à frente um capataz”.
Mas, apesar de todos os problemas, das dúvidas e desavenças, as obras avançam e as novas habitações começam a ganhar forma. Porém, de que vale ter uma casa se não se tem nada para pôr lá dentro? Junto à costa, o peixe começa a escassear e, no alto mar, mandam os grandes arrastões. As pequenas embarcações não podem concorrer com eles... Surge a hipótese dos pescadores, unidos numa cooperativa, poderem comprar um barco com outras dimensões.
O filme, que se iniciou com uma rede de peixe miúdo que se puxava para a praia, termina com as imagens de uma traineira que navega pelo mar fora. A quem pertence? Para onde se dirige? O futuro é incerto e problemático, mas, como canta José Afonso:
“E se a má língua não cessa / Eu daqui vivo não saia / Pois nada apaga a nobreza / Dos índios da Meia- Praia”.
Sem comentários:
Enviar um comentário