por Alexandra Barros
Em 2000, Susana de Sousa Dias entrou no Arquivo da PIDE/DGS[1] com o objectivo de fazer
investigação para o projecto que tinha em mãos: o filme Processo-crime 141-53, baseado na
história de duas enfermeiras que foram presas por quererem casar, numa altura em que vigorava uma lei, instituída pelo Estado Novo, que proibia as enfermeiras de contrair matrimónio. Para a realizadora, a entrada nesse arquivo constitui o momento fundador do seu trabalho e da orientação que iria dar à sua obra como realizadora e como artista na área de multimédia.
O material do arquivo está na origem das três longas-metragens que se seguiriam a essa primeira
obra sobre o Estado Novo: Natureza Morta, Visages d’une Dictature (2005), 48 (2010) e Luz Obscura (2016). Filmes contra o esquecimento e contra a invisibilidade das personagens “secundárias” (particularmente as mulheres da resistência). Filmes sobre as histórias que ficaram por contar e sobre a memória fraca. Nas palavras da realizadora[2]: “As memórias fortes são aquelas que são alimentadas pelos Estados, pelas instituições oficiais, são as que passam para o campo da memória coletiva e são as mais facilmente historicizadas; as memórias fracas, ou seja, as memórias subterrâneas, interditas, proibidas, são as que permanentemente correm o risco do apagamento total. O meu trabalho tem-se focado nas memórias fracas. Eu abordo o que não está fixo, que não é dito, que é escondido [...].”
Natureza Morta é um filme construído só com imagens e música. Susana de Sousa Dias não quis condicionar a nossa interpretação com um relato próprio, após eliminar o som dos filmes propagandísticos do regime ditatorial que usou como matéria-prima. Porém, a música com que substituiu as narrativas dos filmes originais transporta inevitavelmente um olhar pessoal e uma forte carga expressiva. Dou-lhe agora a palavra para falar sobre o que nos quis mostrar e quais os métodos que utilizou para o conseguir fazer.
“Natureza Morta é um filme na origem do qual se encontram as fotografias dos presos políticos portugueses, depositadas no Arquivo da PIDE/DGS. O filme partiu da vontade de pensar essas imagens, imagens que, aparentemente, são iguais a todas as outras imagens de todos os presos políticos de todas as ditaduras. Imagens que me conduziram a outras do mesmo tempo, todas elas resultantes de uma certa encenação do poder: atualidades, reportagens de guerra, filmes documentais de propaganda, mas também rushes nunca utilizados nas montagens finais. Imagens de arquivo, na maior parte das vezes a preto e
branco, que constituem um vasto espectro de documentos visuais da época. Através delas, Natureza Morta pretende mostrar a vida (e, em certa medida, o seu reverso) de um regime autoritário, tomando como linha orientadora os traços que são comuns à generalidade das ditaduras: uma ideologia de integração, um sistema de controlo da sociedade, um modelo que reconstrói o passado e determina o futuro em função da ideologia, a utilização da figura do "salvador", o envolvimento da família na nação. No entanto, a ausência de materiais filmados por opositores ao regime colocava um problema essencial: como mostrar o outro lado de um regime autoritário através de imagens maioritariamente produzidas por esse mesmo regime? É
preciso dizer que Natureza Morta é um filme sem palavras; para além de um breve texto inicial, não existe um discurso que nos diga como devemos ler as imagens que nos são apresentadas.
A concepção do filme e a determinação da sua estrutura foi-se desenvolvendo durante todo o período de pesquisa de imagens. Nesta fase, que se estendeu por alguns anos, vi centenas de horas de materiais de arquivo. Ao longo do processo, comecei a aperceber-me que, por vezes, no interior da imagem apareciam sinais de desintegração interna da própria mensagem que o regime pretendia veicular, ou seja, quase como um ponto de doença da própria imagem. A procura de sintomas nas imagens que nos remetessem para uma outra realidade, uma realidade que estivesse para além daquela que é percepcionada num primeiro momento, tornou-se na démarche principal do filme.
Para os tornar visíveis, foi necessário proceder a uma série de operações. Estas constituíram os princípios formais do filme e foram essencialmente três: câmara lenta, reenquadramento e fusão a negro[3]. Iniciei o processo de montagem com cerca de 20 horas de imagens, que fui selecionando durante os visionamentos, e acabei o filme, que tem 72 minutos, utilizando apenas 12 minutos de imagens, para além das imagens filmadas na ocasião, ou seja, as fotografias dos presos políticos. Ao tornar a imagem mais lenta e ao reenquadrá-la, trouxe para primeiro plano detalhes que de outra forma não seriam visíveis. Por outro lado, como já referi, optei por não usar palavras para não condicionar a leitura da imagem. Este foi um dos princípios estruturantes do filme [...]
O facto de estar a lidar nos meus filmes com imagens de carácter histórico tornou o trabalho particularmente complexo, sobretudo porque a lógica seguida foi a [...] de procurar abrir a imagem dentro da sua especificidade própria dando-a a ver para além do seu sentido imediato, sem, no entanto, subverter a sua natureza intrínseca. A questão é complexa, tanto mais que, como sublinha Arlette Farge, ‘o arquivo pode dizer tudo e o seu contrário’.”[4]
Susana de Sousa Dias, com o seu olhar demorado e atento, desenterrou dos arquivos oficiais um contra-arquivo (nas suas próprias palavras[2]) e conseguiu a proeza de nos dar a ver o segundo ao mesmo tempo que nos dá a conhecer os primeiros.
[1] Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) / Direcção-Geral de Segurança (DGS) - Polícia política portuguesa responsável pela repressão de qualquer forma de oposição ao regime político do Estado Novo. Entre outras funções, censurava, prendia, torturava e matava “inimigos” do Estado.
[2] Em entrevista realizada por Margarida Esteves Pereira, transcrita no capítulo “Susana de Sousa Dias - Uma espécie de arqueologia da memória”, incluído em “Mulheres, Artes e Ditadura – Diálogos interartísticos e narrativas da memória”, Coordenação: Ana Gabriela Macedo, Márcia Oliveira, Margarida Esteves Pereira, Joana Passos e Laís Natalino, Editora Húmus, 2022.
[3] Fade-in/fade-out (a partir de/para negro).
[4] Corpos estranhos ou (des)igualdades inscritas na película, Susana de Sousa Dias, in “Arte e género: mulheres e criação artística”, páginas 230-240. Lisboa, Portugal: Faculdade de Belas Artes, CIEBA, 2012.
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