quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O Movimento das Coisas (1985) de Manuela Serra



por João Palhares

Havia um rio chamado Lete, na mitologia grega. Ficava no submundo junto ao palácio de Hades, sob um cipreste. Dele bebiam os mortos para se esquecerem da vida terrena. Os romanos chamavam-lhe Lethes, ou flumen oblivionis, e localizaram-no geograficamente durante a conquista da Península Ibérica. Numa expedição liderada por Décimo Júnio Bruto em 137 a.C., os soldados, receando perder a memória, disseram ao comandante que não atravessariam o rio, o que levou o centurião romano a percorrê-lo até à outra margem para provar aos seus homens que as águas não tinham poderes místicos ou demoníacos, gritando os nomes de cada um deles do outro lado do rio para também eles o atravessarem. Esse rio era o Rio Lima, escondido numa névoa que ocultou também uma aldeia, um povo e um país.

Colheitas, desfolhadas e cerimónias com a idade do mundo, a vida e a morte, o trabalho e a diversão, o dia e a noite, as mulheres e os homens, a lua e o sol, o campo e as fábricas, a música e as canções que os acompanham, restos de milho a planar como halos sobre as meninas que trabalham, decanas a rirem-se de forma indulgente dos jovens quando dançam e bebem por já terem passado por tudo aquilo, entregas de sopa em termos no meio da praça, olhares de amor não dissimulados de uma mulher quando o homem, depois de se queixar da vida e dos filhos, lhe elogia a comida que cozinhou.
 
Manuela Serra, depois de estudar na Bélgica no Institut des Arts et Diffusion (IAD), de trabalhar na montagem de Deus, Pátria e Autoridade (1974) e fundar com os seus colaboradores e cúmplices de trabalho de então a Cooperativa Virver (onde foi produzido Bom Povo Português, em 1980), partiu para Lanheses ainda nos anos setenta, antes que os ventos do progresso levassem as memórias desses ritos ancestrais, deixando-as impressas no filme que resultou da sua vontade, da sua paciência e do seu labor, O Movimento das Coisas, terminado em 1985 mas estreado comercialmente em Portugal apenas este ano. 
 
Em entrevista a Ilda Teresa de Castro[1], em 2000, a realizadora confessou que "viajei sozinha de carro à procura da minha aldeia. No Alentejo não sentia empatia com as pessoas e senti algum preconceito por ser uma mulher sozinha. No Norte senti-me mais confortável enquanto mulher sozinha nas minhas visitas solitárias aos espaços comunitários. No Minho há uma alegria que falta em Trás-os-Montes e nas Beiras. Apetecia-me aquela alegria do colorido do Outono no Minho. Por coincidência, eu queria uma aldeia com rio e aquela, Lanheses, tinha um. Uma antropóloga que conheci falara-me dessa aldeia. Isso também me favoreceu, porque ela tinha estado por lá a fazer uma investigação e, portanto, as pessoas estavam um pouco mais receptivas à presença destas mulheres curiosas, que ali vinham." 
 
Com banda sonora de José Mário Branco, o filme nunca é apenas um registo de actividades e costumes antigos, abraçando cada aldeão e cada família, cada vida e cada gesto com uma imensa generosidade. Tempo para mostrar uma criança a tentar fazer a sua parte nas colheitas, para ver num rosto de uma mulher sonhos e ambições que vão para lá do Minho, para sintetizar num jantar e com muito humor os confrontos geracionais que se intrometeram entre tantas famílias portuguesas nesses anos de transição. Três dias em Lanheses, que já foram tantas Sextas-Feiras, Sábados e Domingos das nossas vidas passadas. 

Quando o nevoeiro mítico pousa sobre a aldeia com os sintetizadores de Mário Branco como música de fundo, com fábricas e tempos novos a assolar a paisagem, percebemos que vão ser muitas e terríveis as mudanças a atingir essa pequena povoação do norte de Portugal. Até já aconteceu. Mas como o centurião romano desses tempos idos que também são evocados pelo filme nas travessias plenas de névoas pelo Lima, nada esqueceremos graças a Manuela Serra. Atravessou o nevoeiro da memória e chamou toda a gente pelo nome. Arriscou tudo e mostrou-nos o movimento das coisas.

[1] Castro, I. T. de. (2012). À Volta d'O Movimento das Coisas - conversa com Manuela Serra. artciencia.Com, Revista De Arte, Ciência E Comunicação, (15).

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