Rossellini, o grande aventureiro, o grande inventor de formas e um dos homens livres do século XX. Dele exibir-se-ão duas obras durante este ciclo de Outubro, sendo a primeira Alemanha, Ano Zero, último volume da famosa trilogia da Guerra e a nossa próxima sessão na blackbox do GNRation.
Num mesa redonda publicada na revista Cinéfilo, em 1973, e quando se começa a falar de Alemanha, João César Monteiro diz que "eu queria, antes de mais, mencionar uma história que o Rossellini conta acerca da sua chegada a Berlim, pouco antes de iniciar a realização do filme. Os escombros da cidade estavam mergulhados numa luz uniforme e cinzenta, numa aparência desoladora, portanto, e o único sinal de cor era fornecido por um longínquo ponto amarelado que os olhos de Rossellini detectaram, de pronto. O tipo sentiu-se atraído por essa nota insólita no décor e verificou que se tratava de um enorme cubo de pedra, no cimo do qual se lia a seguinte inscrição: Bazar Israel. Era um marco da reconstrução. Graças a esta presença, Rossellini descobre repentinamente o filme que era preciso fazer. É evidente que, ao contar esta história, Rossellini propagandeia um superinstinto que enche um espírito céptico, como o meu, das mais sombrias desconfianças, até porque eu não acredito que essa espécie de veni, vidi, vinci, face ao cinema, possa normalmente dar resultados muito satisfatórios. Sucede que, como o resultado é, neste filme, surpreendente, a minha perplexidade me deixa um pouco boquiaberto e sem norte."
Num texto publicado no volume «Roberto Rossellini. Le Cinéma Révélé», Alain Bergala escreve que "independentemente do que o próprio Rossellini tenha tido [Cf. Table Ronde], as contingências da História tiveram sem dúvida um papel biográfico decisivo nesta descoberta do poder de revelação que têm as coisas filmadas, na sua literalidade, na sua nudez. No momento em que filmava a «trilogia neo-realista»: Roma, Città Aperta, Paisà e Germania, Anno Zero, a guerra, momentaneamente, tinha destruído em Itália até a possibilidade mesma, para um cineasta, de filmar a partir de uma realidade já re-elaborada. Já não há estúdios, já não há cenários, já não existe nada daquilo que possibilitava a reconstrução de uma realidade cinematográfica ao abrigo da realidade nua. Apenas havia o mínimo (a câmara, alguns pedaços heterogéneos de película) e Rossellini não terá tido outra hipótese senão recomeçar, a partir dessa tábua rasa, e confrontar o cinema com essa realidade de ruínas, de caos e de decadência moral dos tempos imediatos à guerra.
"A partir dessa descoberta, Rossellini vai adquirir uma convicção inabalável: o cinema tem a vocação ontológica de se ligar à literalidade das coisas e somente a ela, e essa é, de facto, a via para a emergência (ou reforço) de uma verdade que é apenas devedora dos poderes do cinema. Essa foi a convicção de todo o cinema moderno que sempre foi um cinema do primeiro grau, da denotação, das coisas na sua nudez. Na definição de modernidade em Roland Barthes, entrava uma componente essencial essa «conformidade plana da representação à coisa representada». O cinema moderno, herdeiro de Rossellini, teve sempre um santo horror a sobre-significações de símbolos, ao enchimento, à gordura, ao ligamento, ao tecido conjuntivo."
No Dictionnaire, Jacques Lourcelles apresenta-nos o filme como o "terceiro volume da trilogia de Rossellini sobre a guerra (depois de Roma, Cidade Aberta e Paisà). Alemanha, Ano Zero faz admiravelmente a ligação entre essas duas obras essencialmente documentais e a série dos filmes intimistas com Bergman. Na verdade, e situada num contexto em que o estado presente duma sociedade é descrito com uma intensidade extraordinária, aquilo que Rossellini quer contar é acima de tudo a história de uma personagem, o pequeno Edmund. Neste sentido, o filme representa a quintessência do neo-realismo de acordo com o método rosselliniano. «O neo-realismo», escreveu ele, «consiste em seguir um ser, com amor, em todas as suas descobertas, todas as suas impressões. É um ser muito pequeno sob algo que o domina e que, de súbito, o atingirá de uma forma terrível, no momento preciso em que ele se encontra livremente no mundo, sem esperar o que quer que seja. O que importa acima de tudo, para mim, é essa espera; é isso que é preciso desenvolver, tendo a queda que permanecer intacta.» («Cahiers du cinéma», Agosto-Setembro. 1955, retomado no volume «Rossellini. Le Cinéma révélé».) Esse acompanhamento minucioso de um ser vulnerável pela câmara implicou aqui a utilização de planos bastante longos e Alemanha, Ano Zero é um filme muito menos decupado (248 planos) do que Roma, Cidade Aberta ou Paisà. Da Itália à Alemanha, a obra de Rossellini estende o seu território, que em breve estará à escala da Europa e depois de um continente (a Índia). Como sobre todos os seus temas e as suas personagens, Rossellini quer lançar sobre a Alemanha um olhar social que também seja moral. Para ele, o campo de investigação social e o campo de investigação moral sobrepõem-se de forma exacta. Ele expressou as suas intenções com uma clareza tal que não se pode fazer melhor do que citar as suas palavras: «Os alemães eram seres humanos como os outros ; o que é que poderia tê-los levado a este desastre? A falsa moral, essência do nazismo, o abandono da humildade, a exaltação da força em vez da fraqueza, o orgulho contra a simplicidade? Foi por isso que decidi contar uma história de uma criança, um ser inocente cuja distorção de uma educação utópica leva a perpetrar um crime, acreditando estar a cumprir um acto heróico. Mas, nele, a pequena centelha da moral não se tinha apagado: suicida-se para fugir a essa angústia e a essa contradição.» («Cahiers du cinéma», Novembro de 1955, retomado no volume «Rossellini. Le Cinéma révelé».) Em relação à ficção, longe de a desprezar, Rossellini utiliza-a para designar o escândalo onde quer que se tenha instalado: aqui no crime e no suicídio da criança, ou então no internamento final de Irene, em Europa 51. As características do seu estilo – sobriedade a beirar a impassibilidade (aí, Rossellini junta-se a Mizoguchi), brutalidade documental, por outras palavras arte do documento em bruto, ausência de sentimentalidade, atenção extrema ao próximo –, à medida que o destino do pequeno Edmundo se encerra sobre ele, tornam-se cada vez mais avassaladoras. É preciso acrescentar aqui uma concisão e uma rapidez de evocação (comparável àquilo que é a rapidez de elocução num narrador oral) que provêm simultaneamente do seu grande pudor, do conhecimento íntimo que tem do seu tema e da confiança que deposita na maturidade do espectador; essa confiança virou-se por vezes contra ele.
"BIBLIO. : planificação (248 planos) no volume « Roberto Rossellini : la trilogia della guerra », Bolonha, Cappelli Editore, 1972 (traduzido para inglês pela Grossman, Nova Iorque, 1973)."
Até logo!
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