por Alexandra Barros
Kurosawa fez Dodeskaden durante um período de crise na sua vida pessoal. Sem conseguir trabalhar
com os estúdios cinematográficos, formou uma companhia de produção com três amigos - o Clube dos
Quatro Mosqueteiros - a qual produziu este filme. A rodagem foi rápida e económica, contrariamente ao
que lhe era habitual. Utilizou a cor pela primeira vez e afastou-se do estilo e temas habituais. Não há
heróis, nem histórias inspiradoras, nem mensagens morais. Também não há uma narrativa central. O
filme é composto por um conjunto de episódios sobre os habitantes de um bairro de lata.
Todos os dias um “comboio” percorre o bairro. O condutor do "comboio" é Rokuchan, um rapaz cuja
imaginação o coloca ao volante de um veículo fictício. O filme começa e acaba na casa de Rokuchan e
nas suas paredes forradas a desenhos infantis e muito coloridos de comboios. A casa espelha o seu
mundo de fantasia tal como as casas cinzentas e degradadas dos vizinhos espelham as suas vidas.
Rokuchan percorre, durante o filme, um circuito fechado. Em circuito fechado estão também os vizinhos:
Masuo e Hatsu, dois amigos, em estado permanente de embriaguez, e as suas mulheres, sujeitas às
atribulações dos maridos alcoolizados; Ryotaro, um pai devotado a diversos filhos, nascidos de relações
extra-conjugais da sua mulher, novamente grávida; um sem-abrigo e o filho, mendigos e habitantes da
carcaça velha de um carro, alimentando-se com os restos recolhidos pelo rapaz em restaurantes,
enquanto o pai “projecta” uma mansão luxuosa; Katsuko, uma jovem forçada a trabalhar até à exaustão,
por um tio alcoólico com quem vive; Hei, um homem abalado pela traição da ex-mulher, Ochô, que
cedeu a um impulso, apesar de nem sequer gostar especialmente do homem que a seduziu; ....
Embora estas personagens vivam em condições penosas, que as conduzem por vezes a
acontecimentos trágicos, o filme não se instala nesse registo dado que é pontuado por episódios
cómicos ou ternurentos. Estação 1: Masuo e Hatsu, incapazes de reconhecer as suas casas quando a
elas regressam embriagados, trocam casas e mulheres entre si, sem que isso cause qualquer
transtorno a nenhum deles/as. Estação 2: A dor de Hei lançou-o para um limbo. Fechou-se a este
mundo, vagueando nele como um morto-vivo. Ochô lamenta o que aconteceu e procura o perdão de
Hei. Também ela sofre por causa do seu acto irreflectido. Hei, no entanto, é como o tronco de uma
árvore morta. O tronco parece, mas já não é, uma árvore. No entanto, ainda é considerado um belo
homem pelas mulheres do bairro que se divertem com as tentativas de aproximação de uma delas.
Estação 3: Katsuko é violada pelo tio num leito de flores vermelhas artificiais, as mesmas que é
obrigada a fazer, para o sustentar. Num episódio anterior tinha desfalecido sobre um tapete de flores
azuis, que fazia enquanto o tio dormia descansadamente. Katsuko, transtornada pelo abuso e
maus-tratos que sofre em silêncio, acaba por esfaquear o seu único amigo, Okabe. Recuperado do
ataque, Okabe recusa-se a acusá-la, sabe que não houve maldade no acto. A amizade sai fortalecida
deste incidente, depois de Katsuko confessar quão importante Okabe é para ela. Num filme em que as
cores têm significado, e em que a maior parte das roupas se limita a tons de cinzento, Okabe
apresenta-se sempre de branco. Katsuko também usa roupa clara, incluindo um casaco rosa pálido.
A amizade de Okabe alivia o sofrimento de Katsuko, mas para os habitantes do bairro, distanciados
física e socialmente do Japão que floresce economicamente, é maioritariamente a alienação - através
do álcool, sonhos, imaginação, ... - que proporciona esse alívio. Contudo, esses espaços de fuga
também podem vir a revelar-se impiedosos, quando quem os habita neles fica enredado. Estação 4: O
pai sem-abrigo evade-se da realidade imaginando construir uma casa de sonho para o seu filho e para
si. Porém, quando fica aprisionado no sonho, convencido que tudo vai ficar bem, acaba por deixar
morrer o filho, devido a uma intoxicação alimentar em que não quis acreditar. O nível cultural deste par é
nitidamente distinto do dos outros habitantes do bairro. São possivelmente os únicos que tiveram uma
vida fora deste meio, num passado bastante diferente do actual, que transparece na linguagem,
reflexões e sensibilidade estética das conversas do pai com o filho. Esta diferença é sublinhada pelo
facto de serem os únicos cujo nome nunca é referido. O pai é considerado pretensioso e Tanba, um
ancião sábio, é o único no bairro que com ele interage, tentando chamá-lo à razão.
Estação 5: Tanba é bondoso, mesmo com quem tenta agredi-lo, e utiliza uma estratégia peculiar para
lidar com a violência e o desespero dos vizinhos: torna-se cúmplice em actos condenáveis para
conseguir sabotá-los. Ao oferecer-se para colaborar em tais actos, confunde os seus “parceiros”,
conseguindo que estes reavaliem os propósitos iniciais.
Neste filme, a imaginação, a sageza, a amizade e a bondade, utilizadas como estratégias
(in)conscientes para atenuar o sofrimento, surgem como reflexo da capacidade humana para perseverar
mesmo nas mais duras condições. Devido às circunstâncias pessoais de Kurosawa durante este
período da sua vida, várias leituras têm apontado para um jogo de espelhos entre Dodeskaden e a sua
vida privada, leituras essas ancoradas nos temas da imaginação, instabilidade mental, criatividade,
loucura, sofrimento e superação. Certo é que, neste filme, Kurosawa se reinventou para poder continuar
a fazer o que dava significado à sua vida: transformar histórias em filmes, fazer cinema!
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