quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Dodeskaden (1970) de Akira Kurosawa



por Alexandra Barros

Kurosawa fez Dodeskaden durante um período de crise na sua vida pessoal. Sem conseguir trabalhar com os estúdios cinematográficos, formou uma companhia de produção com três amigos - o Clube dos Quatro Mosqueteiros - a qual produziu este filme. A rodagem foi rápida e económica, contrariamente ao que lhe era habitual. Utilizou a cor pela primeira vez e afastou-se do estilo e temas habituais. Não há heróis, nem histórias inspiradoras, nem mensagens morais. Também não há uma narrativa central. O filme é composto por um conjunto de episódios sobre os habitantes de um bairro de lata. 

Todos os dias um “comboio” percorre o bairro. O condutor do "comboio" é Rokuchan, um rapaz cuja imaginação o coloca ao volante de um veículo fictício. O filme começa e acaba na casa de Rokuchan e nas suas paredes forradas a desenhos infantis e muito coloridos de comboios. A casa espelha o seu mundo de fantasia tal como as casas cinzentas e degradadas dos vizinhos espelham as suas vidas. Rokuchan percorre, durante o filme, um circuito fechado. Em circuito fechado estão também os vizinhos: Masuo e Hatsu, dois amigos, em estado permanente de embriaguez, e as suas mulheres, sujeitas às atribulações dos maridos alcoolizados; Ryotaro, um pai devotado a diversos filhos, nascidos de relações extra-conjugais da sua mulher, novamente grávida; um sem-abrigo e o filho, mendigos e habitantes da carcaça velha de um carro, alimentando-se com os restos recolhidos pelo rapaz em restaurantes, enquanto o pai “projecta” uma mansão luxuosa; Katsuko, uma jovem forçada a trabalhar até à exaustão, por um tio alcoólico com quem vive; Hei, um homem abalado pela traição da ex-mulher, Ochô, que cedeu a um impulso, apesar de nem sequer gostar especialmente do homem que a seduziu; .... 

Embora estas personagens vivam em condições penosas, que as conduzem por vezes a acontecimentos trágicos, o filme não se instala nesse registo dado que é pontuado por episódios cómicos ou ternurentos. Estação 1: Masuo e Hatsu, incapazes de reconhecer as suas casas quando a elas regressam embriagados, trocam casas e mulheres entre si, sem que isso cause qualquer transtorno a nenhum deles/as. Estação 2: A dor de Hei lançou-o para um limbo. Fechou-se a este mundo, vagueando nele como um morto-vivo. Ochô lamenta o que aconteceu e procura o perdão de Hei. Também ela sofre por causa do seu acto irreflectido. Hei, no entanto, é como o tronco de uma árvore morta. O tronco parece, mas já não é, uma árvore. No entanto, ainda é considerado um belo homem pelas mulheres do bairro que se divertem com as tentativas de aproximação de uma delas. Estação 3: Katsuko é violada pelo tio num leito de flores vermelhas artificiais, as mesmas que é obrigada a fazer, para o sustentar. Num episódio anterior tinha desfalecido sobre um tapete de flores azuis, que fazia enquanto o tio dormia descansadamente. Katsuko, transtornada pelo abuso e maus-tratos que sofre em silêncio, acaba por esfaquear o seu único amigo, Okabe. Recuperado do ataque, Okabe recusa-se a acusá-la, sabe que não houve maldade no acto. A amizade sai fortalecida deste incidente, depois de Katsuko confessar quão importante Okabe é para ela. Num filme em que as cores têm significado, e em que a maior parte das roupas se limita a tons de cinzento, Okabe apresenta-se sempre de branco. Katsuko também usa roupa clara, incluindo um casaco rosa pálido. 

A amizade de Okabe alivia o sofrimento de Katsuko, mas para os habitantes do bairro, distanciados física e socialmente do Japão que floresce economicamente, é maioritariamente a alienação - através do álcool, sonhos, imaginação, ... - que proporciona esse alívio. Contudo, esses espaços de fuga também podem vir a revelar-se impiedosos, quando quem os habita neles fica enredado. Estação 4: O pai sem-abrigo evade-se da realidade imaginando construir uma casa de sonho para o seu filho e para si. Porém, quando fica aprisionado no sonho, convencido que tudo vai ficar bem, acaba por deixar morrer o filho, devido a uma intoxicação alimentar em que não quis acreditar. O nível cultural deste par é nitidamente distinto do dos outros habitantes do bairro. São possivelmente os únicos que tiveram uma vida fora deste meio, num passado bastante diferente do actual, que transparece na linguagem, reflexões e sensibilidade estética das conversas do pai com o filho. Esta diferença é sublinhada pelo facto de serem os únicos cujo nome nunca é referido. O pai é considerado pretensioso e Tanba, um ancião sábio, é o único no bairro que com ele interage, tentando chamá-lo à razão. 

Estação 5: Tanba é bondoso, mesmo com quem tenta agredi-lo, e utiliza uma estratégia peculiar para lidar com a violência e o desespero dos vizinhos: torna-se cúmplice em actos condenáveis para conseguir sabotá-los. Ao oferecer-se para colaborar em tais actos, confunde os seus “parceiros”, conseguindo que estes reavaliem os propósitos iniciais. 

Neste filme, a imaginação, a sageza, a amizade e a bondade, utilizadas como estratégias (in)conscientes para atenuar o sofrimento, surgem como reflexo da capacidade humana para perseverar mesmo nas mais duras condições. Devido às circunstâncias pessoais de Kurosawa durante este período da sua vida, várias leituras têm apontado para um jogo de espelhos entre Dodeskaden e a sua vida privada, leituras essas ancoradas nos temas da imaginação, instabilidade mental, criatividade, loucura, sofrimento e superação. Certo é que, neste filme, Kurosawa se reinventou para poder continuar a fazer o que dava significado à sua vida: transformar histórias em filmes, fazer cinema!

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