Na segunda semana do nosso ciclo com os Encontros da Imagem, voltamos a Jean-Luc Godard, depois de O Acossado e O Livro da Imagem, e relembramos Jean-Paul Belmondo, falecido o mês passado. É ele o Pierrot de Pierrot le Fou, a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.
Em entrevista a Jean-Louis Comolli, Michel Delahaye, Jean-André Fieschi e Gérard Guégan, para os Cahiers du Cinéma, e quando estes afirmam que há quem considere diletantismo misturar cinema e política, Godard diz que "a resposta a isso é simples: pode-se ler o Le monde de forma séria ou como diletante. De qualquer forma, o facto é que se lê, e isso faz parte das nossas vidas. No cinema, no entanto, se se estiver num quarto, não é suposto abrir simplesmente a janela e filmar o que está a acontecer lá fora. Os resmungões vêem isto como uma ruptura na unidade, mas por causa disso tudo não conseguem ver onde está a unidade. Pode-se sentir que em Pierrot a unidade é puramente emocional, e salientar que há algo que não se enquadra nesta unidade emocional; mas dizer simplesmente que a política não tem direito a estar lá não tem sentido, uma vez que faz parte da unidade emocional. Aqui volta-se à velha classificação por géneros: um filme é poético, psicológico, trágico, mas não lhe é permitido ser simplesmente um filme. Naturalmente que se fosse fazer um filme sobre o caso Dreyfus, ia-se ver muito pouco sobre o caso e bastante coisa sobre as pessoas e as suas relações pessoais. Outra das coisas fascinantes para fazer hoje em dia seria a vida de um estenógrafo em Auschwitz (Mikhail Romm fez uma compilação documental nestes moldes chamada Obyknovennyy fashizm). Mas um filme sobre um estenógrafo em Auschwitz ia ser odiado por toda a gente. A pretensa esquerda sempre foi a primeira a criticar os verdadeiros cineastas de esquerda, tanto Pasolini e Rossellini na Itália, como Dovzhenko e Eisenstein na Russia. Só se pode falar sobre o meio que se conhece, ao princípio; mais tarde, com a idade e com a experiência, este meio abre-se. É muito curioso que não tenha havido filme nenhum sobre a Resistência, em França. Claro que os italianos lidaram com o problema da Resistência e da libertação em termos políticos, porque os tinham vivido de forma muito mais óbvia, e o fascismo tinha afectado mais a Itália do que a França. Ainda assim, de um ponto de vista emocional, as vidas da geração anterior à nossa foram totalmente alteradas pela guerra. Mesmo agora ainda vivem nos dias anteriores à guerra e não emergiram no período do pós-guerra. Mas também não há filmes sobre isto. Nenhum filme sobre as aventuras dos irmãos Ponchardier, os verdadeiros Frank e Jesse James da Resistência. Na América ou na Rússia teria havido vinte filmes sobre Moulin, o Maquis des Glières, e por aí fora. Em França, houve um filme que tentou evocar a atmosfera de 1944, Les honneurs de la guerre de Dewever. Foi quase banido. Assim que aparece um filme que é mais ou menos honesto, surge um clima de suspeita e depreciação."
O filme de Godard foi uma experiência transformadora para Chantal Akerman, que confessou que "quando vi Pierrot le Fou pela primeira vez tinha 15
anos e não sabia quem era Godard, mal sabia que havia um cinema de autor. Quando ia ao cinema ia ver
La Grande Vadrouille e os filmes de Walt Disney;
era só para me divertir, para sair em grupo e comer
gelados, não era certamente para ter um choque emocional ou para ver uma obra de arte. Não sabia que
o cinema podia ser uma obra de arte. Portanto fui ver
este filme porque o título me agradou, Pierrot le Fou... e
vi esse filme e foi para mim uma coisa tão diferente, tão
outra. Fiquei com a impressão que falava comigo, que
era poesia. E como antes de fazer filmes sempre tinha
querido escrever, senti neste filme qualquer coisa que
alcançava os grandes cumes da escrita, mas por uma
outra via e essa outra via pareceu-me ainda mais fascinante. E quando saí do cinema disse: eu também quero fazer filmes"
Já o célebre crítico e pensador do cinema Alain Bergala assistiu às rodagens do filme, dizendo que "eu era estudante de Letras - porque não havia curso de cinema - e para nós, Godard era O grande cineasta, era um deus. A própria ideia de o ver era uma coisa estranha. Além disso, eu nasci precisamente no Var e aprendi a na- dar na península de Giens, onde íamos com os meus pais; esse território, onde parte do filme foi rodado, é o meu, o da minha infância. Foi um primo, cozinheiro num hotel da ilha de Porquerolles, que sabia que eu me interessava muito por cinema que me telefonou e disse: ‘Vem aí um cineasta realizar o filme, chama-se Godard...’ Não o larguei mais, pedindo que me avisasse quando eles chegassem, e um dia ele
telefonou-me a anunciar-me a sua chegada.
"Pedi emprestada uma câmara 16 mm a um amigo, comprei uma bobina e levei a minha pequena máquina fotográfica. Postei-me onde os barcos acostam, assim tinha certeza de não falhar a sua chegada. E eles chegaram... vi Raoul Coutard descer com o material, etc. Eu estava um pouco afas-
tado, depois fui para as redondezas do hotel, era um pouco como se os estivesse a perseguir... Eles saíram, vi Anna Karina, Belmondo, Godard. O primeiro plano que filma- ram foi o desembarque na ilha, os planos dos pés. Mas na praia não havia ninguém, por isso eu dava muito nas vistas. Reconheci Jean-Pierre Léaud, que era uma espécie de assistente. Perguntei-lhe: ‘Pode perguntar a Godard se posso ficar aqui e tirar fotografias?’ Léaud foi perguntar a Godard, voltou e disse: ‘Godard disse que sim, mas com uma condição: é que não fume...’ O que não fazia qualquer sentido. Assim eu pude filmar - material que infelizmente se perdeu - e tirar fotografias.
"Não fiquei mais que meio-dia mas é evidente que foi uma coisa que me marcou muito - vi toda a gente, vi Godard instalar um travelling, vi como trabalhava, etc. É uma coisa que voltei a fazer muitas vezes depois disso, e que data desta experiência fundadora: ir às rodagens, regressar aos lugares para confrontar a representação do filme com uma reali- dade geográfica. Foi também extremamente forte o facto do artista que eu mais admirava no mundo vir ao ‘meu’ território.”
Até Terça-Feira!
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