segunda-feira, 18 de outubro de 2021

209ª sessão: dia 19 de Outubro (Terça-Feira), às 21h30


Na terceira semana do "Génesis", visitamos os bairros de lata do Japão, com as lutas e os sonhos de todos os dias, o embate do ser humano com a sociedade no seu estado mais premente e essencial. Dodeskaden, vigésimo sexto filme de Akira Kurosawa, é a nossa próxima sessão no auditório da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

No último capítulo de The films of Akira Kurosawa, Donald Richie escreve que "Kurosawa disse que lhe era impossível definir o próprio estilo, que não sabe em que é que consiste, que nunca lhe ocorre pensar nele. Embora perfeitamente disposto a falar sobre lentes, ou interpretação, ou o melhor tipo de gruas para a câmara, ele recusa-se a discutir significados ou estética. Uma vez perguntei-lhe sobre o que uma certa cena era mesmo. Ele sorriu e disse: "Bom, se conseguisse responder a isso, não teria sido necessário filmar a cena, pois não?" 

"A razão para a relutância dele em falar sobre significados e sobre estética talvez seja o facto de não serem reais, de não terem uma realidade visível. A estética presume um sistema, e o estilo presume uma expressão e uma reflexão do próprio homem. Nenhum deles tem qualquer interesse quando comparados com a realidade do novo filme a ser feito, o novo guião a ser escrito. Um homem preocupado com o seu próprio estilo é um homem inseguro, e Kurosawa é contido. Cada filme é uma expressão directa de si mesmo, é verdade, mas, longe de querer traçar paralelos ou procurar comparações entre os seus filmes, ele tem uma aversão relativamente a ver-se a si próprio como era. Tal como insiste que os seus heróis descuram o passado deles e vivem permanentemente no presente, também ele próprio não tem interesse no que quer que lhe tenha acontecido. "Um realizador gosta sempre mais do filme actual. Se não for assim, não o consegue realizar," disse ele uma vez, e como o presente é de tanta importância, a atitude dele em relação a feitos passados tem sido omissa e realista ao mesmo tempo."

Em entrevista à Criterion em 2009, Teruyo Nogami, assistente de Akira Kurosawa, referindo-se aos actores do filme, disse que "(...) muitos dos actores nunca tinham entrado antes num filme de Kurosawa. Um deles, Junzaburo Ban, estava habituado a fazer comédia. Ficou com o papel difícil de Shima. Ban tinha dificuldades em memorizar diálogos longos, mas havia uma cena de nove minutos que tinha de ser filmada num só take. É a cena em que Shima convida pessoas a sua casa para beber saqué. Os convidados queixam-se que a mulher de Shima se está a comportar de forma arrogante, e as coisas descambam a partir daí. É uma boa cena, mas o Ban estava tão nervoso que eles tiveram de fazer novos takes continuamente. A cada momento, um assistente de produção tinha que substituir o rolo de película. O velho Kurosawa teria perdido a paciência e começaria a gritar, mas em vez disso, e de todas as vezes, disse apenas gentilmente, “Muito bem, vamos tentar outra vez.” Quando chegaram finalmente ao fim dos nove minutos, Kurosawa foi ter com Ban e disse, “Bom trabalho.” Ban afundou-se no chão como se toda a sua força lhe tivesse sido sugada, e apertou a mão ao realizador com lágrimas nos olhos. 

"Outro exemplo: Kamatari Fujiwara interpretou um velho que diz que quer morrer, que não quer viver mais um dia, e Atsushi Watanabe interpretou um velho perspicaz que lhe oferece um digestivo, dizendo-lhe que é veneno. Tiveram os dois uma grande cena de oito minutos, repleta de diálogos formidáveis, mas Fujiwara era famoso pela sua incapacidade em memorizar as falas; parecia simplesmente não se conseguir lembrar delas. Por fim Kurosawa ficou farto e mandou-me dar-lhe indicações. Isso estava óptimo enquanto ensaiávamos, mas se o fizesse durante um take, a minha voz também seria gravada. Ainda assim, sem as indicações, o Fujiwara enganava-se sempre nas falas, portanto no final eu tive que as fornecer numa voz alta que foi gravada junto com as dos actores’. Lembro-me que depois disso eles tiveram uma dificuladade dos diabos em apagar a minha voz da fita."

Já Jacques Lourcelles, no seu Dictionnaire, escreve que "este microcosmo da angústia humana é também um microcosmo da condição humana, moldada por Kurosawa com uma compaixão infinita e uns tesouros de humor. Esse humor tem qualquer coisa de hugoliano e prende-se particularmente com o imaginário de certas personagens, a bondade radiosa de outras, como que sobrenatural nesta fossa. Um ritmo lento, repetitivo e comovente entrelaça as histórias umas às outras e encerra as personagens tanto nos seus sonhos como na realidade. Para elas é uma e a mesma prisão de que não se conseguirão erradicar. A maior parte nem sequer quer. Imaginário e real, miséria atroz e tolice, hiper-realismo e lirismo fantástico (especialmente nos cenários e no emprego da cor, que Kurosawa utiliza aqui tardiamente pela primeira vez) são enredados pelo autor com uma ousadia tranquila com a qual poucos cineastas poderia disputar: trata-se de alcançar, com a ajuda de tantas personagens e tons diferentes, essa visão global da humanidade que também se encontrará em Viver, O Barba Ruiva e Dersu Uzala. O microcosmo toma então aparência de fresco. É aí que é preciso apreender o génio específico de Kurosawa, muito mais que nas grandes máquinas de Kagemusha ou Ran

"BIBLIO.: argumento e diálogos in «Complete Works of Akira Kurosawa», vol. 1, Kinema Jumpo-sha, Tóquio, 1971. Edição bilingue japonesa e inglesa. Descrição minuciosa das personagens e dos locais. Cada plano é ilustrado por um ou vários fotogramas."

Até Terça-Feira!

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