por António Cruz Mendes
Para François Truffaut, O Crime do Sr. Lange é “o mais espontâneo, o mais vivo em milagres de câmara, mais cheio de pura beleza e verdade” dos filmes de Jean Renoir.
O ritmo da narrativa, as histórias que se entrecruzam, os repetidos quid pro quo, as situações dramáticas envoltas numa atmosfera jubilosa, os problemas amorosos que se resolvem entre lágrimas e sorrisos, o olhar terno e irónico do realizador – conhecemos tudo isso, por exemplo, de A Regra do Jogo. Mas se, então, a acção decorre num contexto aristocrático e burguês, desta vez, os protagonistas são gente do povo.
A excepção é Batala, o proprietário da pequena editora que edita uma revista de cordel, que gosta de exibir um estilo de vida muito diferente daquele que o seu pequeno negócio lhe poderia permitir e que, por isso, se vê endividado e perseguido pelos credores. Hitchcock dizia que “quanto pior é o vilão, melhor é o filme” e Batala faz jus a essa afirmação. Sem escrúpulos, mas sedutor e bem-falante, é em torno dele que gira toda a história. E a sua morte acaba por ter um valor metafórico: é o velho mundo burguês que morre na personagem da Batala para que um novo mundo, personificado na cooperativa dos trabalhadores que tomam nas suas mãos o destino da editora se possa afirmar.
A cena da morte de Batala é um prodígio de humor negro. O cínico bon vivant, disfarçado de padre, sabendo-se ferido de morte, pede um padre. Mas o único que o ouve é, perdido de bêbado, o porteiro dos prédios onde está sediada a editora e vivem os protagonistas desta história, o pequeno mundo onde tudo se passa. Entretanto, prossegue ruidosa a festa onde todos celebram o sucesso da cooperativa e a possível adaptação para o cinema das aventuras de Arizona Jim.
A história é-nos contada pela voz de Valentine, aquela mulher livre e auto-determinada que conhecemos já de outros filmes de Renoir. É ela quem adopta Lange como companheiro, que o acompanha na fuga e que reúne aquela espécie de “tribunal popular” que o iliba do seu crime e lhe oferece a liberdade.
Uma outra personagem muito “renoiriana” é Meunier, burguês frívolo, diletante, mas com bom coração, que, aqui, assume, quase como que por acaso, o papel de compagnon de route dos camaradas trabalhadores.
E temos, por fim, Lange, o tímido e eterno sonhador. É ele o autor das aventuras de Arizona Jim que vão salvar a editora da falência e é ele o autor do crime que vai impedir que ela regresse à posse do malvado Batala. Mas, mais do que um herói consciente da importância dos seus actos, ele é o veículo de um Deus ex machina que vai permitir a vitória do bem sobre o mal.
O filme data de 1936, ano da vitória eleitoral, em França, da Frente Popular que reuniu socialistas, comunistas e radicais. Foi nos anos 30, tempos de crise e de recessão económica, mas também de uma nova esperança num futuro melhor, que surgiu, no cinema francês, o realismo poético que tem, neste filme, um dos seus melhores exemplos. E, nas palavras do próprio Jean Renoir, foi também “o momento em que os franceses acreditaram verdadeiramente que se iam amar uns aos outros”.
O Crime do Sr. Lange é o primeiro de um ciclo de oito filmes que decorrerá no mês de Outubro na Biblioteca Lúcio Craveiro e no GNRation, organizado pelo Lucky Star – Cineclube de Braga e pelos Encontros da Imagem que, este ano, foram dedicados ao tema “Genesis”.
Sem comentários:
Enviar um comentário