por Carlos Melo Ferreira
Ramiro de Manuel Mozos (2017) é mais um bom filme deste simpático cineasta português que, sem as peneiras de "grande artista do cinema" de outros, continua tranquilamente a construir uma obra pessoal de grande qualidade. E é a sua primeira longa-metragem de ficção depois de 4 Copas (2008).
Num tempo em que as livrarias continuam a morrer, escolhe um alfarrabista como protagonista, Ramiro/António Mortágua, num filme em que vários outros e especialmente outras giram em volta dele. Com livros que na loja caem em cima da cabeça dos clientes (Isabel/Cristina Carvalhal), tem como protegidas uma jovem grávida, Daniela/Madalena Almeida, e uma convalescente de um avc, Dona Amélia/Fernanda Neves.
Por sua vez, o pai da jovem, Alfredo/Vítor Correia, carpinteiro a cumprir pena por ter matado a mulher, é visitado na prisão por Ramiro a pedido da convalescente Dona Amélia, e uma vez em liberdade procura-o, na sequência do que, sem chegar a encontrar a filha, deixa uma prenda para o neto por nascer.
Baseado numa construção sobre espaços fechados, da casa, da loja, de restaurantes e bares, o filme abre para o exterior quando o protagonista procura o futuro avô nos lugares em que ele terá vivido.
Manuel Mozos é um cineasta inteligente, que trabalha as coisas simples e elementares da vida, do nascimento até à morte (Jaime França/Henrique Espírito Santo) passando pela alimentação e a bebida, e sabe filmar Lisboa sorrateiramente, à socapa de uma cidade que já não existe assim, e os actores à altura precisa em cada plano. Do mesmo modo, sabe usar de uma ironia portuguesa, citadina e lisboeta, nomeadamente quanto aos desajustes das novas tecnologias para os mais velhos e quanto aos comentários destes sobre os mais novos e os novos tempos.
Declarou que lhe interessa o que está a acabar, e este Ramiro vem muito bem na esteira do documentário Ruínas (2009) e dos filmes que, gabo-lhe a paciência, tem dedicado ao cinema português, à censura e ao amor apaixonado do cinema (João Bénard da Costa: Outros Amarão as Coisas Que Eu Amei, 2014).
Com argumento de Telmo Churro e Mariana Ricardo, colaboradores habituais de Miguel Gomes, fotografia de João Ribeiro, montagem de Pedro Filipe Marques e vestuário de Lucha d'Orey, Ramiro de Manuel Mozos é do melhor do actual cinema português, o seu melhor filme desde Xavier (1992), e por isso vivamente o recomendo aqui.
in «A Prenda do Avô», 5 de Março de 2018, blog Some like it hot.
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