por Mário Jorge Torres
Portugal revisitado pela noção de perda, substituindo à monumentalidade da História a anonimidade do fragmento irrisório
"Com estes fragmentos escorei as minhas ruínas"
T.S. Eliot, "The Waste Land"
Manuel Mozos ocupa no panorama do actual cinema português um lugar singular: por um lado, o de construtor de arrojadas ficções que inscrevem um olhar renovador na geografia de uma Lisboa proletária, marginal e povoada por oníricos sinais, entre a (im)perfeita completude dessa obra-prima impura e dialéctica que dá pelo nome de um herói desgarrado, Xavier (1992, mas estendendo-se ao longo de anos de difícil produção, para estrear demasiado tarde, de modo a poder entender-se a sua radical importância), o curioso fracasso de uma obra confusa e algo megalómana como ...Quando Troveja (1999) e o recente descentramento de 4 Copas (2008), a traçar uma visão suburbana, quase irreconhecível, do seu mundo de fantasmas vivos, ao encontro do quotidiano moderno; por outro, o de rigoroso documentarista, oscilando entre o brilho incontroverso da "biografia cultural" (José Cardoso Pires - Diário de Bordo, 1998) e o fascínio pela colagem arquivística, mas infinitamente criativa, de pequenas preciosidades históricas: o magnífico Cinema Português? (1997) ou o inventivo Censura: Alguns Cortes (1999), um dos mais transversos e importantes olhares sobre as intrínsecas contradições do Estado Novo.
Este intróito revela-se fundamental para falar de Ruínas, na medida em que este filme-ensaio funciona na curta obra de Mozos como súmula de todo o seu universo conceptual. Se não vejamos: o filme assume-se como "biografia" subterrânea de um país condenado pelo abandono da memória, transformada em lixo cultural; faz da "collage" modernista o seu método caótico de investigação sobre um passado contraditório e algo desconexo; inscreve nos intervalos de um documentário aleatório e prospectivo o desejo de ficções miniaturais, tendentes a recompor um retrato de meio-corpo de personagens ausentes e perdidas na voragem do tempo: os habitantes anónimos daquele sanatório gigantesco que agride a paisagem da Serra da Estrela, feito esqueleto de uma doença passada, mas perpetuado pela permanência dos seus sinais físicos na paisagem; os actores fantasmáticos daquele Parque Mayer desertificado no centro de uma Lisboa transformada em lixo urbano e transtornada por um progresso sem sentidos; os turistas "mortos" da ribatejana Estalagem Gado Bravo, de que saltaram letras da insígnia identificativa, numa tétrica "natureza morta" povoada por dejectos e por restos quase fossilizados de caveiras de animais; os frescos modernistas de um restaurante em Monsanto, com panorama sobre a capital do Império perdido, como se ainda convidassem a lautos banquetes de tempos que já lá vão e não voltarão nunca mais; as viagens impossíveis de chegada à estação de Barca de Alva, desactivada e inoperante, no coração do Douro Internacional, com carruagens enferrujadas e marcas de uma impotência atávica em operar uma arqueologia da memória; os vestígios desfeitos de uma mina abandonada que sinaliza o impasse de uma produção obsoleta de riquezas miríficas.
Há riscos neste retrato de um país "arruinado" e inútil (ou inutilizado?) visto a partir da incúria de um património menor? Há e muitos, mas Mozos tem consciência do jogo da (in)glória que desenha, evitando a demagogia fácil das imagens de decadência, como se procurasse ver Portugal pelo lado das inevitáveis "derrotas". O que se torna fascinante é o modo como toma partido, deixando em aberto a perspectiva crítica de cada espectador, embora conduzindo sempre o seu olhar com implacável direccionalidade. Se existe possível rima interna, subjacente a este projecto, ela faz-se com Manoel de Oliveira, como se se tratasse de um contraponto documental a Non, ou a Vã Glória de Mandar: o país revisitado pela noção de perda, substituindo à monumentalidade da História a anonimidade do fragmento irrisório, tornado significativo pela acumulação geográfica de gestos sem saída. Ao Portugal dos Pequenitos que um arquitecto do antigamente construíra para glorificar uma ridícula noção do património imaginário, apõe Mozos um Portugal dos "Grandes", devastado e espectral, monstruoso porque verdadeiro.
Haverá quem conteste que esta negatividade passa por alguma pretensão poética, uma poética pobre, contraditada (mas também acentuada) pelo certeiro recurso à textualidade de Ruy Belo, por exemplo, um poeta da "habitação" e do território. Uma coisa não podemos negar: estamos perante uma corajosa frontalidade, perante a nossa incapacidade de lidar com a pequena História de nós, com o terror de termos de escorar a nossa realidade entre ruínas. E regressamos, para concluir, a T. S. Eliot, citado, como na epígrafe, da tradução portuguesa de Maria Amélia Neto: "Penso que estamos na viela dos ratos/Onde os mortos perderam os seus ossos".
in «Terra sem vida», Público, 31 de Março de 2010.
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