quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Mon Oncle (1958) de Jacques Tati



por Alexandra Barros

Monsieur Hulot vive num bairro onde todos os vizinhos se conhecem e relacionam amistosamente. Juntam-se regularmente no mesmo café, nos tempos de lazer. Têm relações de familiaridade com os comerciantes locais e cuidadores das ruas do bairro (o varredor do lixo e quem faz a sua recolha e transporte para o aterro, numa carroça puxada a cavalos). Abastecem-se e convivem num mercado de rua, onde os clientes chegam a servir-se a si próprios e a deixar o pagamento devido na banca, quando o vendedor está a tomar café, na esplanada próxima. Na parte moderna da cidade, há “casas inteligentes”, fábricas onde os trabalhadores parecem tão automatizados quanto as máquinas que operam, e estradas com várias faixas de rodagem, onde na hora de ponta os carros avançam num lento e ordenado cortejo. 

O prédio onde vive Hulot é o equivalente a uma manta de retalhos. Blocos que parecem vindos de diferentes habitações encaixam uns nos outros, como um Lego montado cooperativamente por várias crianças. Apesar disso, ou talvez por isso, possui o encanto próprio dos enigmas não decifráveis ao primeiro olhar. No prédio, todos parecem viver de portas abertas, como uma grande família. Hulot oferece doces à menina que vive no rés-do-chão, desvia respeitosamente o olhar de uma vizinha em roupa interior, com quem se cruza nas escadas, e mima o canário do vizinho da frente, utilizando o vidro da sua janela para redirecionar os raios de sol para a gaiola do pássaro. Este retribui, cantando. 

Hulot tem uma irmã, Madame Arpel, que vive, juntamente com o marido e filho (Gerard), numa casa “inteligente”, na zona moderna da cidade. Na casa tudo tem uma forma geométrica precisa e Madame Arpel não deixa que um grão de pó macule o aspecto lustroso do conjunto. As janelas circulares do quarto dos Arpel dão à casa o aspecto de um rosto voltado para a casa vizinha. À noite, as silhuetas dos Arpel enquadradas pelas molduras das janelas parecem as pupilas de olhos que espiam. O jardim tem um caminho desenhado que obriga as pessoas a realizar um percurso elaborado e longo entre o portão e a casa, ao longo do qual encontram: uma fonte, com um peixe metálico que deita água pela boca, só acionado quando a casa é visitada por alguém que se quer impressionar; uma mini-esplanada com mini-mesa e mini guarda-sol; arbustos “gémeos” milimetricamente alinhados e canteiros cobertos de gravilha. No interior, as peças de mobiliário têm formas arrojadas, mas não são adequadas às suas funções. As cadeiras e sofás são desconfortáveis ou só utilizáveis quando colocados em posições inusitadas. As escadas interiores minimalistas (só com um corrimão) não são seguras e as tecnologias de que tanto se orgulham os Arpel chegam a colocá-los em situações perigosas, como quando ficam fechados na garagem por causa de um sensor mal concebido. Quem visita os Arpel é orgulhosamente levado a percorrer a casa, como se de um museu se tratasse. Madame Arpel destaca o facto de todos os compartimentos comunicarem entre si. “Tudo comunica!”, diz infalivelmente. Se na casa tudo comunica, o mesmo não acontece com os seus habitantes. Entre os pais e o filho existe uma distância que nem os brinquedos oferecidos pelo pai diminuem. Gerard mostra total desinteresse pelo comboio sofisticado que o pai lhe traz de presente. Quando, logo a seguir, o tio chega com umas figuras de papel, animadas por cordéis, o miúdo não contem as gargalhadas. Noutra cena, Gerard, ouvindo o som do aspirador na sala, corre ao encontro da mãe, mas sai desiludido ao encontrar apenas o aspirador, que foi deixado a trabalhar de forma autónoma. 

Hulot está desempregado. Monsieur Arpel, que trabalha numa fábrica que produz tubos de plástico, tenta arranjar-lhe emprego. Hulot, no entanto, não está formatado para um mundo onde todos os gestos têm que obedecer a coreografias específicas e os homens são complementos das máquinas. Estas aproveitam as distrações e inépcia de Hulot para “saírem da rotina”, produzindo quilómetros de “salsichas” de plástico ou “serpentes” com vida própria, em vez dos tubos programados. Na casa da irmã, Hulot sente-se igualmente confuso e mesmo ameaçado pelos electrodomésticos autónomos, que parecem procurar uma oportunidade para atacá-lo. As visitas de Hulot são, porém, uma alegria para Gerard, que não aprecia a vida na casa-museu e só se diverte quando o tio o leva a passear ou nos encontros com amigos que vagueiam livremente, improvisando diversões inspiradas nas situações com que se deparam. O cão da família também gosta de fazer umas escapadelas e juntar-se a grupos de cães vadios que percorrem a cidade, procurando comida e brincando. 

No final do filme, máquinas de demolição avançam sobre as habitações degradadas do bairro de Hulot e a praça do mercado está vazia, indicando que o desenvolvimento imobiliário alcançou o bairro. 

Neste filme, em que os diálogos são escassos, o contraste marcado e caricatural entre o velho bairro e a cidade moderna é conseguido através dos cenários primorosamente projectados por Tati, incluindo a casa dos Arpel, concebida com a colaboração de Jaques Legrange, argumentista com background em arquitectura e ligações a Le Corbusier. Além de um olhar crítico sobre a modernidade e a homenagem nostálgica a um estilo de vida prestes a desaparecer, o filme reflecte a importância que os espaços onde habitamos, trabalhamos e passamos os tempos livres têm no nosso bem-estar e no modo como nos relacionamos com os outros. Os edifícios e espaços urbanos determinam modos de vida pela forma como se deixam ou não habitar. A configuração do bairro de Hulot proporciona proximidade e a existência de uma comunidade. Nos subúrbios modernos, os vizinhos mal se conhecem e a casa dos Arpel mais do que servi-los, parece ser servida por eles.

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