Quase no final do ano, a uma semana do Natal, é altura de viver ou reviver as duas horas de tristezas e alegrias de um dos mais belos pares da história do cinema, entre elevadores, pratos de esparguete, amores, enganos e promessas. Assim, O Apartamento de Billy Wilder é a nossa última sessão de 2020. Com Jack Lemmon e Shirley MacLaine, no auditório do Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa.
A Cameron Crowe, em Conversations with Wilder (Alfred A. Knopf, Nova Iorque, 1999), o cineasta austríaco disse que "a origem de O Apartmento foi o facto de ter visto o belo filme de David Lean, Breve Encontro (1945). Era a história de um homem que está a ter um caso com uma mulher casada e vem de comboio para Londres. Eles vão para o apartamento de um amigo dele. Eu vi-o e disse, “Então e o tipo que se tem de arrastar para aquela cama quente... ?" Isso é uma personagem interessante. Então anotei isso, e anotei outras coisas no meu bloco de notas. O herói dessa coisa era o tipo que suportava isto, que era apresentado a tudo por uma mentira. Um tipo na companhia dele precisava de mudar de roupa, dizia ele, e usava o apartamento... e foi isto.
"Peguei nele outra vez porque tínhamos acabado de terminar o Quanto Mais Quente Melhor e eu gostei tanto de Jack Lemmon. A primeira vez que trabalhámos juntos foi em Quanto Mais Quente Melhor, e eu disse, “O tipo é este. É este o tipo para interpretar o protagonista."Um bocado submisso, como dissemos, tem-se pena dele. Mas tive O Apartamento na cabeça durante anos e anos antes de ser mesmo activado. "Como é que se vai sentir o tipo que rasteja para aquela cama depois dos amantes saírem?" Isso foi mesmo como começou. Pensei, "Vai ser censurável." Mas mantive essa ideia, e depois quando os [padrões] se soltaram um bocado, fizemo-lo. Tinha o ponto de vista do tipo dos seguros, o C.C. Baxter. E queria dizer que Lemmon é um tipo ingénuo. O superior dele - aquele tipo que dirige a companhia - quer ir à ópera, e gostava de usar o apartamento para trocar de roupa. E Lemmon diz, "Pode-o usar!" E isso desencadeia a forma como ele se torna um criado para o chefe, o presidente do grupo de seguros, que depois lhe arranja um emprego melhor. Ele tinha de ser um bocado tímido em relação ao assunto para a coisa resultar. Isso era uma questão importante, o problema que tivemos de resolver - tivemos de encontrar a forma perfeita para transmitir isso. Ele faz isso tudo de forma ingénua."
Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, e depois de enumerar as injustiças e as acumulações raras da obra nos Óscares, João Bénard da Costa escreveu que "(...) a singularidade deste filme vai muito para além destas singularidades com ou sem estatueta. Um espectador apressado pode dizer que com tais actores (e aos três designados vale bem a pena juntar o veterano Fred MacMurray) tal argumento e tais técnicos (LaShelle, Trauner, Fred Lau) qualquer um, medianamente competente, fazia um bom filme. Precisamente, a história de Hollywood dos fifties e do início dos sixties mostra que com fábulas de quotidiano análogo, longínqua ou proximamente a seguir modelos da TV da época, se registaram os piores malogros (com actores, argumento e técnicos de igual calibre) e que Billy Wilder se aventurou aqui num dos caminhos mais arriscados da sua obra. Não fosse a prodigiosa realização (a arte de tudo modular, tudo obnubilar e tudo elidir) e The Apartment não seria mais do que um veículo para o excepcional par Lemmon-MacLaine (e já na ideia de juntá-los, honra seja feita a Billy Wilder que o voltou a fazer no prodigioso Irma La Douce, três anos depois) e uma história de pequenas pessoas, pequena burguesia, pequeno quotidiano, um pouco triste, um pouco sórdida, um pouco realista, um pouco cáustica, género Mann (Delbert ou Daniel).
"Billy Wilder nessas não caía e quanto mais pensamos na construção do filme, mais vemos como o seu lado "quotidiano" e "realista" é genialmente subvertido. Correm as letras do genérico, e o que vemos (ainda sem o saber) é a fachada do apartamento de C.C. Baxter, que logo a seguir surge em voz off (primeiras estatísticas de água no bico) e, depois, em carne e osso, na profundidade de campo do imenso escritório esvaziado dos seus 87.000 empregados. Nunca nos é claramente dito, mas esse apartamento, elogiado e invejado por todos os ilustres e menos ilustres visitantes, é o pequeno "desequilíbrio" da vida do cumpridor, meticuloso e pontual C.C. Baxter (toda a gente, naquela companhia, tem nomes próprios anónimos). Para o pagar (está acima das suas posses, ainda por cima com o recente aumento de renda do senhorio), Baxter começa a vender-se e a vendê-lo. Tão divertidas são as peripécias, os hóspedes (aquela loira que só copia Marilyn na voz) e tão simpático é o pobre Lemmon, que vai passando despercebido que a chave que corre de mão em mão é também a chave que dá acesso ao 27º andar e ao "executive material", alvos das desgraças de C.C."
No seu Dicionário do Cinema, Jacques Lourcelles diz que é o "segundo dos sete filmes com Jack Lemmon rodados por Billy Wilder, O Apartamento teria resultado de uma promessa feita ao actor pelo cineasta, encantado com a sua composição em Some Like it Hot, de escrever um dia um argumento especialmente para ele. O Apartamento é também o primeiro de uma série de quatro filmes em Cinemascope a preto e branco (cf. One, Two, Three, Kiss Me, Stupid, The Fortune Cookie) que forma um conjunto muito original na obra de Wilder. Aqui, uma comédia mordaz e amarga muda-se a pouco e pouco para um melodrama desolador ao qual Wilder escolhe dar um final feliz. Este cruzamento de tons muito habilidoso não é apenas um efeito da virtuosidade do autor mas corresponde também à dupla natureza do seu tema. Se sabe descrever personagens fortes, «vencedores» (cf. The Spirit of St. Louis ou Stalag 17, em que William Holden encarna um «vencedor» original e muito mal visto pela sua comitiva), Wilder também gosta de evocar os perdedores, as vítimas, os explorados pela sociedade, que a seus olhos não são de todo marginais, mas sim americanos médios que a doçura de carácter e a fantasia transformaram em negligenciados em nome da «struggle for life». Shirley MacLaine (no seu melhor papel) e Jack Lemmon encarnam dois destes explorados, um no plano sentimental, o outro no plano profissional. Sob o efeito de uma influência recíproca, vão encontrar a coragem para se libertar das suas correntes. A passagem para o melodrama serve para revelar a verdadeira natureza das duas personagens. Lemmon, falso bon vivant e falso Don Juan, na realidade é um solitário, um homem brando que suporta a tirania e a chantagem dos seus chefes. Shirley MacLaine, jovem sedutora e cobiçada, paga o azar amoroso com a sua tristeza e os seus suicídios falhados. O scope a preto e branco acrescenta ao filme um lirismo secreto, uma gravidade e um suplemento de realismo que implantam a intriga numa verdade emocional um pouco mais profunda, ainda. Como nos seus melhores filmes, Wilder permanece aqui um pintor social muito virulento; o seu desejo é iluminar com uma luz crua, e no entanto não desprovida de ternura, os corredores um pouco vergonhosos da sociedade em que vive.
"BIBLIO. : «The Apartment and the Fortune Cookie, two screenplays by Billy Wilder and I.A.L. Diamond», Londres, Studio Vista, s.d. Tratam-se de argumentos de rodagem para os dois filmes redigidos com muitos detalhes pelos dois autores. (As diferenças entre o guião e o filme definitivo são quase nulas para The Fortune Cookie e bastante mínimas para The Apartment.) O argumento de The Apartment (texto idêntico ao da publicação anterior) tinha sido publicado no volume «Film Scripts Three», reunido por George P. Garrett, O.B. Hardison, Jr., Jane R. Gelfman, para a Appleton-Century-Crofts, Nova Iorque, 1972 (com The Misfits de Huston e Charade de Donen)."
Até Quinta!
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