por João Palhares
Pelos vistos, a inspiração original para o filme que hoje vamos ver, foi outro filme, de David Lean, o famosíssimo Breve Encontro entre Celia Johnson e Trevor Howard de 1945. Billy Wilder viu essa obra exasperadamente romântica ambientada ao som do segundo concerto para piano e orquestra de Sergei Rachmaninoff, que também usou na banda-sonora do seu O Pecado Mora ao Lado com Marilyn Monroe de 1955, e concentrou-se essencialmente e de forma bastante curiosa numa personagem secundaríssima, Stephen Lynn, que cede o apartamento ao par de apaixonados que se conhece naquela estação de comboios inglesa. A Cameron Crowe, nos anos 90, confessou mesmo ter pensado “então e o tipo que se tem de arrastar para aquela cama quente? Essa é uma personagem interessante. Então anotei isso, e anotei outras coisas no meu bloco de notas. O herói daquela coisa era o tipo que suportava isto, que era apresentado a tudo por uma mentira. Um tipo na companhia dele precisava de mudar de roupa, dizia ele, e usava o apartamento... e foi isto.”[1]
Não é de admirar que uma personagem que esteja sempre disposta a emprestar o seu apartamento para pequenas aventuras amorosas e adúlteras, à custa de noites muito mal dormidas, constipações bem graves e facadas na própria reputação diante dos vizinhos, que fazem dele um Giacomo Casanova ou um pequeno marquês de Sade, comece a meditar bem a sério na sua relação com o mundo, porque no final das contas é possível passar uma vida inteira a oferecer as mãos e os braços aos outros sem receber o que quer que seja em troca. Affection-wise. Talvez seja essa carência fundamental, que pode dar em chaga insuportável se se beber o suficiente, e se representa por uma secretária entre cem secretárias iguais numa grande empresa de seguros, esperas calmas em recepções vazias à porta de elevadores, encontros frustrados à entrada de teatros, ou noites muito solitárias em balcões de bares, a conceder a O Apartamento um lirismo e uma universalidade ainda inabaláveis. A toda a prova, sessenta anos depois. Jack Lemmon e Shirley MacLaine como todos aqueles que vivem as promessas dos dias durante noites em claro, se sentem sós estando sozinhos ou acompanhados, ou deixam escapar uma centelha nos olhos quando a vida lhes sorri só mesmo um bocadinho. Os que em vez de levar se deixam ser levados. Está bom para santos, para seres humanos nem por isso.
Mas se essa melancolia e essa solidão se sentem, e às vezes de forma insuportável, é por força da câmara de Wilder, que afinal não era tão apegado aos seus guiões perfeitos e acabados que o impedisse de escrever novas cenas inspirado por locais, gestos, olhares e pelo momento durante a própria rodagem. Daí o efeito caleidoscópico das cem secretárias, daí as personagens encurraladas em si mesmas diante de salões de entrada vazios ou vastas paredes e móveis de apartamentos, daí a pista sintética dada por um espelho partido que anda de mão em mão durante uma secção importante do filme, daí esse plano fabuloso de um telefone ameaçador em primeiro plano a tentar destronar o amor próprio de uma pessoa quase desfeita (o da nota, também), daí a simetria sempre desarmante e milagrosa do último plano do filme. Pode desaguar tudo, mas mesmo tudo, como flagelos que atingem a carne e a mente, na sequência basilar da noite de véspera de Natal. Imersos em álcool e comprimidos, um homem e uma mulher são acordados para a vida por um anjo da guarda que também se há-de vestir de branco por profissão. Ela, literalmente. Ele, e à falta de melhor expressão, de forma espiritual. Vemos então um corpo estendido num cadeirão e enquadrado ao lado de uma árvore de Natal luminosa e decorada: a ironia não escapa a ninguém. Como que presa, ainda, nas incessantes subidas e descidas do seu elevador, a “Miss Kubelik” de Shirley MacLaine vacila entre a realidade e o sono derradeiro ao som violentíssimo das chapadas do homem que quer transformar o menino Baxter num “mensch”. Este, o “Mister Baxter”, que achava que o elevador era só mais um meio para subir na vida, começa a descobrir que às vezes o que é preciso mesmo é descer assim decididamente e a pique até ao piso térreo. E entre a verticalidade do elevador e a horizontalidade do apartamento, a vida acontece e duas almas encontram-se, como numa cruz fortuita e plena de rimas e sentidos que talvez só se desenhe mesmo no cinema.
Se nos quisermos concentrar na vida, e avaliando, ressentindo e aceitando todo o ano que vivemos (em 2020, a véspera de Natal é numa Quinta-Feira como em O Apartamento), às vezes basta um homem, uma mulher, uma raquete de ténis e um prato de esparguete, almôndegas e molho de carne para improvisar uma consoada. Em termos de companhia e gastronomia, não estamos nada mal servidos.
[1] in «Conversations with Wilder» de Cameron Crowe, Alfred A. Knopf, Nova Iorque, 1999, p. 136.
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