sábado, 7 de abril de 2018

89ª sessão: dia 10 de Abril (Terça-Feira), às 21h30


Com As Férias do Sr. Hulot (a nossa próxima sessão, nas salas de cinema do Braga Shopping), Jacques Tati conquistou o mundo. Conquistou-o com a criação da personagem do Sr. Hulot, com um trabalho exímio na construção dos gags, com os elogios desenfreados à infância e à inocência, com personagens e situações que não esquecemos e que, acompanhadas da música de Alain Romans, passaram a definir todas aquelas semanas que se passam à beira-mar, perto de desconhecidos e conhecidos, sem noção do tempo mas com noção de coisas mais importantes, como aproveitar a vida ao máximo e sem preconceitos. É na próxima Terça-Feira.

Sobre o seu trabalho, Tati disse a André Bazin e a François Truffaut, no nº 83 dos Cahiers du Cinéma, que "ao ver As Férias do Sr. Hulot em público, arrependi-me de não ter colocado um pequeno cartão, antes, que daria algumas explicações: «Cá está, vão de férias, vão observar pessoas que conhecem, outras que conhecem menos...». O espectador tem um pequeno esforço a fazer, acho eu, para entrar no mundo cómico que é criado por Hulot. Se está à espera da descoberta de Hulot, fica inevitavelmente desapontado. Diz a si próprio: «Porque é que esta personagem não inventa, não se defende?» E era essa defesa que o faria rir. Na construção cómica de Chaplin, temos uma parte em que ele se esgueira, o que diverte imenso os espectadores, porque há uma invenção no acto de se esgueirar. São duas concepções diferentes, nem que seja só pelo tamanho. Há um que é grande, que não se pode esconder, pôr-se atrás de um lampião, ou seja do que for, enquanto que Chaplin se podia meter atrás de uma pequena lata do lixo, deixando o seu chapéu por cima da lata, e passar para trás doutra pequena lata, deixando acreditar que esteve sempre atrás da primeira, e depois voltar para procurar o chapéu... Hulot, pelo contrário, tem o físico de um tipo bem sólido; ele comporta-se exactamente como qualquer habitante de Paris, da província, etc."

Já perto do fim do seu livro The Comic Mind, que nos guiou pela aventura Chaplin, Gerald Mast debruça-se sobre os filmes de Tati, escrevendo que "a rotinização de As Férias do Sr. Hulot (1953) é muito mais subtil—talvez uma das razões para este filme ser o melhor de Tati. O espírito da América e o americanismo não estão muito presentes neste filme. A Bretanha o o turista britânico desempenham um papel muito maior. A amarga ironia das Férias do Sr. Hulot é que as suas pessoas, britânicas e francesas de igual modo, passam 50 semanas por ano a trabalhar nos seus empregos sufocantes e rotineiros para poderem vir para um hotel costeiro berrante e continuarem a rotina sufocante e entediante—comer a horas certas, relaxar a horas certas, dormir e acordar a horas certas. Para a maior parte delas, as "férias" são apenas uma mudança de sítio, não de sentimentos, atitudes, ou reacções humanas. O Hôtel de la Plage é uma espécie de morgue. 

"Assim que Tati adoptou a sua personagem do Sr. Hulot—o nome ecoa obviamente a alcunha de Chaplin em França, Charlot—definiu a sua atitude tanto como actor de cinema como cineasta em relação à esterilidade e à mecanização mortificantes que via no mundo em seu redor. Quando Francois se tenta converter a si próprio numa máquina sem sucesso, o Sr. Hulot mal parece consciente de estar rodeado por um mundo de máquinas e pessoas mecânicas. Tati o realizador está ciente das máquinas e comenta a sua omniprença envolvente, mas Hulot o personagem vai simplesmente à sua vida (outra semelhança com Keaton). Hulot contrasta com os mecanismos inumanos pela sua vida, pelas suas maneiras, pelo seu estilo de vida, movimento e resposta, sem sequer se aperceber. 

"Nas Férias do Sr. Hulot, é o turista inconvencional com o andar engraçado, o traje de pirata ridículo para o baile de máscaras, o carro velho que tosse, o estilo estranho (mas avassalador) de jogar ténis, o gira-discos barulhento, os sapatos sujos, e muitas outras inconvencionalidades desajeitadas. Ele não sabe que é inconvencional, mas os outros turistas têm muita consciência (e muito interesse) em relação à inconvencionalidade de Hulot—como revela fortemente o gag recorrente do filme. (As janelas do hotel enchem-se subitamente de luz de cada vez que Hulot faz algo de disruptiveo) Da mesma forma, em Playtime Hulot só quer arranjar um trabalho ou ir a um bar, e em Trafic quer apenas arranjar a auto-caravana num festival internacional automóvel."

No Dictionnaire, Lourcelles escreveu que As Férias do Sr. Hulot é "o mais burlesco dos filmes franceses e o mais francês dos filmes burlescos. Num estilo límpido, elegante e muito elaborado, Tati encadeia uma colecção incalculável de gags numa trama que exprime a monotonia e a languidez de uma estação veraneante. Raramente se viu tanta invenção transmitida num ritmo tão calmo e descontraído. Aliança também única, no estilo de Tati, entre a acuidade do realismo social e o que só pode ser chamado de poesia indefinível, feita de uma certa melancolia exterior e de um profundo júbilo interior. No seio de um pequeno mundo acanhado que vive de convenções e de rotinas, a personagem de Hulot aparece como um estrangeiro polido, um modesto perturbador e sobretudo um revelador. É o último depositário de um espírito de infância e de uma espécie de ligeireza de ser que em breve deixarão de ser deste mundo. Tati, sabe-se, mostra gostar tão pouco de diálogos como o Chaplin dos Tempos Modernos. Prefere os ruídos às palavras, ou melhor, para ele as palavras não passam de ruídos, e muitas vezes os mais inúteis. O primeiro gag do filme é baseado numa zombaria sobre o texto, com os altifalantes da estação a emitir uma mensagem incompreensível que faz com que os viajantes errem pelas vias à procura do seu comboio. Dito isto, se Hulot mal fala para os outros e se não falam com ele, não é devido a qualquer fidelidade ao antigo estilo do burlesco. Não nos devemos enganar: Hulot é um filme moderno, e a incomunicabilidade faz a sua aparição pelo menos sentencioso dos cineastas. O uso que Tati dá ao plano geral, em que a realidade é apreendida com distância e na sua globalidade, é igualmente de um modernismo extremo. A personagem de Hulot voltará a aparecer em O Meu Tio (1958), primeira descrição inquieta da chegada do mundo moderno ao universo de Tati (Jour de fête, esse, era totalmente desprovido de inquietação), depois em Playtime (1967), naufrágio soberbo, tanto quanto um naufrágio o pode ser, em que Tati verá o corpo e os bens serem engolidos pelos efeitos conjugados de uma ambição excessiva e de uma megalomania contrária à sua verdadeira natureza, e finalmente em Trafic (1971), sátira aguçada e infinitamente justa do universo automóvel. A recepção reservada pelo público ao génio de Tati inspira um sentimento ambíguo. Por um lado, decepção e pesar por Tati só ter podido assinar seis longas-metragens em quarenta anos de cinema. Por outro lado, não podemos deixar de pensar que chegou no momento certo, sobretudo no que diz respeito às Férias do Senhor Hulot. O grande público de hoje, muitas vezes tão ensurdecido, celebraria um artista tão discreto e tão pouco lisonjeiro como o fez em 1953?"

BIBLIO. : Geneviève Agel : « Hulot parmi nous », Èditions du Cerf, 1955. (A autora é pioneira ao saudar como cineasta maior um realizador que só assinou duas longas-metragens.) Jacques Kermabon : « Les vacances de Monsieur Hulot », Éditions Yellow Now, 1988. Na parte dos « documentos » deste volume, comparação interessante sobre variações diferentes que existem entre uma primeira versão escrita do filme, o argumento original, a novelização de Jean-Claude Carrière, publicada pela Laffont em 1958 e o filme definitivo. Para redigir o seu texto, Jean-Claude Carrière apoiar-se-á numa primeira montagem do filme, diferente daquele que conhecemos. De notar que depois da visualisação de Tubarão (Jaws, Steven Spielberg, 1975) Tati acrescentou um gag que agora aparece em todas as cópias recentes (a canoa dobrada em dois de Hulot parece-se com a mandíbula de um tubarão e assusta os veraneantes).

Até Terça!

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