quarta-feira, 11 de abril de 2018

Les vacances de Monsieur Hulot (1953) de Jacques Tati



por João Palhares

Manuel António Pina: E não morremos crianças? 

Agostinho da Silva: Bom, alguns conseguem isso, não é? Ou porque são hábeis na acrobacia da vida ou porque a vida, por grande favor, os poupou. Mas são raros aqueles que conseguem morrer crianças... 

in « Conversas Vadias », ep. 12. 

Verão. Férias. E parece não haver outro filme que consiga abarcar totalmente o que um Verão pode ser a não ser este. Que pode ou não ser uma comédia. Se fosse só pelo resumo ou pela sinopse de Les Vacances de Mr. Hulot, julgar-nos-íamos num drama existencial, em que um homem vem do nada e ruma ao nada. Se soubéssemos o que é isso do "nada". Às vezes parece só uma coisa que serve para atirarmos culpas uns aos outros. "Não fazes nada", "não se passa nada", etc, etc. Se calhar uma semana numa estância balnear é o melhor que uma pessoa consegue engendrar para se isolar dos acontecimentos que se diz "valerem a pena" no nosso calendário. Ir para Carreço, para Moledo ou Vila Praia de Âncora e comer uns caracóis, ver celebridades da nossa praça a passear tartarugas à beira-mar, não conseguir uma boleia para casa e passar a noite dentro do Multibanco para ser expulso cordialmente pela polícia na manhã seguinte com um “nós percebemos, nós percebemos”, apanhar o comboio e ir saindo nos vários apeadeiros antes de chegar o revisor para beber umas cervejas e apanhar o próximo comboio, jogar dominó ao som de Bob Marley, sair de carro de um sítio qualquer com o My Way do Frank Sinatra aos berros... Esquecer o máximo possível as responsabilidades e os trabalhos que nos ocupam o resto do ano e apreciar a vida na sua futilidade, sem coisas para fazer, sem calendários e sem horas para cumprir, sem documentos ou contratos para assinar... 

O Sr. Hulot, nestes dias, está-se completamente a marimbar para isso tudo. Para comer a horas certas, para o dinheiro, para as aparências, para os estratagemas sociais que parecem existir num mundo à parte da realidade. Bem, não se estará a marimbar, especificamente, porque simplesmente ignora ou não acredita que a profissão e o trabalho façam ou definam o homem. Vem só no seu chaço apreciar os pequenos nadas que aquela semana em Saint-Nazaire lhe vai oferecer. (Não falo para já dos gags geniais que aparecem ao longo do filme, que como Playtime é uma enciclopédia do gag). E os nadas têm todos um peso e respiram como se tivessem forma. Um cão a dormir no meio da estrada, o caramelo a cair do gancho do carrinho dos gelados, as crianças a serem crianças (a tarefa hercúlea de levar um gelado, por escadas e portas - muito devagar, para não cair - até ao irmão que nos espera). As coisas que nos esquecemos de contar quando contamos uma história. Queremos tanto que (nos) aconteça alguma coisa que nos esquecemos do que acontece e não vemos nada, somos só pessoas ocupadas demais, vividas demais, chatas demais... Ah! se não falássemos tanto, conseguíamos apreciar o silêncio. Como neste filme. É como se aqueles planos do Ford em cadeiras e em alpendres durassem 90 minutos... Faça-se nada só um bocadinho... 

É se calhar por este avanço civilizacional em relação ao comum dos mortais que o Sr. Hulot está sempre à frente da imagem e sempre à frente do olhar. As pessoas fiam-se na primeira impressão que aquele carro velho e carcomido dá e ele faz de tudo e passa completamente despercebido. Antes que todos percebam o que se passou, já está ele na clarabóia do seu quarto a admirar a obra, como um miúdo traquina. Pegadas e partidas que um raccord não apanha, como quando Hulot vê o empregado à porta do hotel, vira subitamente para a direita e vemos as pegadas que vão na direcção da porta, com o empregado a coçar a cabeça do lado de fora, a olhar para elas e a tentar resolver o puzzle. O cinema foi inventado para se estar além do plano. 

E porque não é só o Playtime que é um filme novo de cada vez que se volta a ver, que dizer daquelas corridas de Hulot em segundo plano espalhadas pelo filme? Ou da sequência dos quadros? De cada gag que foi usado e reciclado mil vezes depois deste filme (a porta do restaurante que voltaremos a ver na Festa de Blake Edwards e Peter Sellers, o jogo de ténis que poderá ter inspirado o Jerry Lewis de The Big Mouth, os passeios por estações balneares de Billy Wilder e Éric Rohmer, em Quanto Mais Quente Melhor e Conto de Verão, etc.). De um filme em que pouco se diz, e o que se diz muito rápido se esquece, talvez não se deva dizer muito (mas não é tudo visual, há imensos gags sonoros espalhados pelo filme). Admirar, só, e passar os dias a tentar pagar a alegria de volta com assobios e pequenas excentricidades. 

A porta que range na ida e na volta, no restaurante. O empregado que tenta decifrar tudo e arregaça uma manga para pôr a outra no aquário. Se basta uma corda esticada para um gag funcionar, o que é feito da comédia? Trocas de identidade, pneus fúnebres, modernidade atrasada. E se Hulot é um exemplo, muito mais que um palhaço? 

- "Então o que tens feito?" 

O que aconteceu a responder a isto com um "nada" e um sorriso na cara?

Sem comentários:

Enviar um comentário