sábado, 7 de abril de 2018

Touchez Pas au Grisbi (1954) de Jacques Becker)



por João Bénard da Costa

Durante o tempo em que escreveu para O Independente, João Bénard da Costa criou uma crónica a que chamou “Os Filmes da Vossa Vida”. Nessa crónica, lia as cartas dos seus leitores e falava dos filmes sobre os quais eles queriam que ele falasse, ajudando-os às vezes até a descobrir nomes de filmes que achavam nunca mais conseguir voltar a encontrar. Numa dessas crónicas, debruçou-se sobre o filme que hoje vamos ver, Touchez pas au Grisbi, a pedido de Francisco Bernardo, da Covilhã. Transcrevemos esse texto para esta sessão. (João Palhares) 

(...) Não me lembro senão de três personagens, não me lembro do enredo, enfim não me lembro de muita coisa. Mas, para além duma estrada nocturna, onde explode um carro já antigo, lembro-me de uma imagem à qual serei fiel para toda a vida (...) "Felizes os que chegam a dizer uma palavra!" (Saúl Dias). Lembra-se, caro João Bénard da Costa, do final deste filme? (...) Se já escreveu sobre, ainda bem. Se não escreveu, escreva (se não faz favor). 

Francisco Bernardo 
Covilhã 

Francisco Bernardo viu Touchez Pas au Grisbi aos 17 anos, quando "andava a descobrir a poesia de Ruy Belo". Escreveu-me à memória dele, no mês de Dezembro, de um comboio, uma bela carta chamada Arte de Memória. Passou por muitos filmes - amadíssimos filmes - até pousar em You Only Live Once de Fritz Lang (1936) e Touchez Pas au Grisbi de Jacques Becker (1954). Filmes - diz-me, pedindo voz a Carlos de Oliveira - "das coisas não logradas ou perdidas / olhos turvos de lágrimas contidas". Porque demorei tanto tempo a responder-lhe? Não sei. As coisas acontecem ou acontecem-nos coisas. Dei tempo ao tempo a memória à memória. Agora julgo que estou pronto. Hoje, Touchez Pas au Grisbi. Para a semana, You Only Live Once. Amor com amor se paga. 

Se eu precisei de tempo, Jacques Becker (1906-1960) precisa de muito mais. Como "toda a gente", gostei muito dos filmes dele, desde que o conheci com Edouard et Caroline (1951), até Le Trou (1960), já estreado depois da morte. Com uma preferência expressa - e confessa - por Casque d'Or (1952), o filme da Signoret e de Reggiani, mas também o filme de Reggiani e de Bussières. "Mais il est bien court le temps des cerises (...)". Só que, "como toda a gente", e à excepção desse "souvenir que je garde au coeur", se o amei perto esqueci-o longe. Como escreveu Marc Chevrie, em 1985, "ce n'est pas que Jacques Becker soit méconnu, c'est son cinéma qui l'est". Porém, de cada vez que lhe revejo um filme - no ano passado, Falbalas (1945) agora Touchez Pas au Grisbi - o que julgava amar volta mil vezes mais forte e descubro que afinal nunca vira o que supunha ter visto. À medida que o tempo passa, esses filmes de Becker aumentam, aumentam e descobre-se, como Micheline Presle aprendeu no catecismo (Falbalas) que criar é fazer qualquer coisa a partir do nada. 

Porque é que há, assim, criadores que precisam de tanto tempo? Não tem que ver com os grandes inovadores. Picasso ou Godard foram amados ou odiados, logo, no tempo das Demoiselles d'Avignon ou do À Bout de Souffle. Outros, pelo contrário, que ficaram sempre numa espécie de surdina (de Jacques Becker a Jacques Demy), satélites de planetas maiores (Renoir para Becker) cada vez brilham mais à medida que avança a noite e descobrimos que ainda não tínhamos idade para os ver quando julgávamos que a idade nossa era a deles. "Frère Jacques", chamou-lhe Você como Godard o chamou, no muito bonito texto de necrológio. Também fiz meu esse doce nome. Mas, hoje, desconfio um pouco. Não é também uma maneira de arrumar como colateral, nem pai, nem filho, nem amante? E morreu num domingo de manhã, à hora em que Max (Jean Gabin) costumava pôr a tocar o seu disco de 45 preferido, como também lembrou Godard. 

Era um disco de jazz, arranjo de Jean Wiener de um tema de Jerry Mary. Umas notas de piano, um solo de clarinete, e o filme começa com ele e acaba com ele. Pode associar-se essa música ao "grisbi" (o roubo das barras de ouro, em Orly, o tal "último golpe" de Gabin, de que falava o título português), pode-se associá-lo ao envelhecimento de Max. São temas evidentes deste filme de gangsters que é um filme sobre um roubo que devia assegurar a Gabin a reforma que, aos 50 anos, sabe que está na hora de chegar. 

Mas roubos, ajustes de contas, até o espectro da velhice tão poderosamente trazido a primeiro plano, são o "macguffin" de Becker. Porque Touchez Pas au Grisbi (e ignoro se a expressão em calão pode ter outros sentidos) é o filme sobre o amor entre dois homens: Max e Riton (René Dary), esse a quem Gabin chama tantas vezes, tocando-o, "tête d'hérisson". Há vinte anos que trabalhavam juntos, há vinte anos que não se largavam. Como o bando diz, Max "quando il aime quelqu'un c'est la vie à la mort". E quelqu'un não vale para quelqu'une, pois que a Max conhecemos muitas mulheres e todas efémeras. Mas será que Max amou alguma vez alguma mulher? 

De Riton não sabemos. Mas sabemos, quando o filme começa, que está perigosamente embeiçado por Josy, uma putazinha traidora, interpretada por Jeanne Moreau em começo de carreira. Max tem medo daquela história que lhe cheira mal (os olhares que lança ao amigo) e dá-lhe como exemplo velhos senis. 

Até que Riton fala de mais e Josy ouve de mais. Até que Josy conta a Angelo (Lino Ventura), novo amante dela, que Riton e Max roubaram as barras de ouro. Numa inolvidável noite - o pão e o paté - Max diz a Riton que Josy lhe pôs os cornos e o traiu. É de espantar na idade deles? E, como um espelho, mostra-lhe ruga a ruga e papada a papada. Depois, diz a Riton que ele nem sonhe em vingar-se e que se afaste de Angelo. Despem-se, lavam os dentes (gestos simétricos, sequências paralelas) e deitam-se. Riton não consegue dormir. 

Mas, no dia seguinte, finge que dorme enquanto Max sai, pé ante pé, para pôr o ouro em lugar seguro. Quando Max volta, Riton já lá não está. Não resistiu e foi ajustar contas. Max percebe que o amigo está perdido e que tudo pode estar perdido. E vem então a sequência que é tão espantosa como o final. Põe o disco que Riton amava no pick-up, tira uma garrafa de champagne do frigorífico, bebe o champagne e insulta em voz off o amigo. "Ce Riton", na voz in de Gabin. "Il m'emmerde ce Riton. Depuis le temps que ça dure. Il faut toujours qu'il fasse des conneries. Qu'est-ce que j'aurais pu faire si je ne l'avais pas toujours derrière moi?". Senta-se e levanta-se e a câmara, sem cortar o plano, acompanha-o em panorâmicas à roda do quarto, impotente e desesperado. 

Até que o telefone toca e uma mulher estrangeira (Marilyn Bufferd) o convida para almoçar em casa dela. O plano do champagne funde-se, sem transição, com o plano de um copo de cognac, em fim de almoço. Estão os dois muito calados. De isqueiro na mão, ela levanta-se para lhe acender um cigarro. Gabin assopra o isqueiro e senta-se ao colo. Vai beijá-la e ela esquiva-se. Há, nele, uma breve inquietação, serenada quando a vê avançar para o quarto. Segue-a e fecha-nos a porta na cara. Corte. Depois, ele já vestido ela ainda nua, Gabin acende outro cigarro. "Tu m'aimes?" pergunta ela. "J'arrive", não responde ele. E, de novo em off-in, recomeça o monólogo com Riton, já não zangado mas cheio de saudades. Naquele corpo de mulher, ou naquela mulher que só tinha corpo, Max reencontrou Riton e decidiu arriscar tudo para o salvar. Nenhum diálogo, nenhuma palavra, só a música, a música sempre, esse tema que se espraia, se dilata e depois, sempre, se suspende. 

É essa sequência - é essa música - que vai desaguar no plano final, o seu plano. Lembro-me, lembro-me sim, do lugar onde isso aconteceu e da luz a que aconteceu. Agora lembro-me de tudo e a tudo dou outro sentido. 

Gabin a chegar ao bistrot do costume, com a nova mulher, a tal estrangeira, para se "mostrar", depois de ter ficado sem o ouro, depois de ter velado a noite toda Riton ferido na cilada. Depois, telefona para saber se Riton continua melhor. Para marcar o número, põe óculos, óculos que nunca antes usara. "Riton est mort, Max". Gabin fica calado, tanto tempo calado. E vemos o corpo de Riton, deitano na cama, por baixo de um quadro que representa uma mulher muito nua. E vemos no rosto de Riton uma luz admirável. Depois, alguém nota que nunca viu Gabin de óculos. "C'est pour lire". Depois, Gabin volta a pôr o disco na máquina. Depois, a tal mulher que ele só da cama conhecia, belisca-lhe a mão, sem perceber nada de nada, sem saber nada de nada. E depois, Gabin sorri. 

Tudo o que aconteceu não importa e tudo o que importa não aconteceu. A câmara vira a cabeça e fixa-se na máquina dos discos para acabar o filme. 

"La petite phrase" nenhuma palavra a dirá jamais. Só essa música, só o clarinete, só esse brilho nos olhos de Gabin. Quem, como Becker, cantou tão manselinho cantigas de amigo? "Max, tu pourras revenir aprés déjeuner?" O filme acaba à hora de almoço. Max e Riton nunca mais hão-de voltar. 

in “Os Filmes da Vossa Vida”, « Suplemento Vida », 11 de Agosto de 1995, pág. 22

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