sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Ensayo de un crimen (1955) de Luis Buñuel



por Alexandra Barros

O filme arranca com um livro sobre a Revolução Mexicana a ser folheado, enquanto Archibaldo introduz o contexto histórico em que se integra a sua história pessoal. Página após página, vemos fotografias de violência e morte. 
 
Embora protegido destes acontecimentos por pertencer a uma família com uma posição privilegiada, o acaso cruzará a sua vida e a revolução. Na infância, enquanto um tiroteio decorre nas ruas, Archibaldo ouve uma fábula, contada pela sua ama. No centro da narrativa está o poder de realizar desejos de uma caixa de música, pertencente a sua mãe. 
 
Uma bala perdida, proveniente do confronto que se desenrola lá fora, mata a ama, mas Archibaldo fica convencido que, por ter desejado esta morte, ela foi executada pela magia da caixa de música. A sensação de poder, o desejo e a morte ficam assim ligados, originando uma disfunção mental que marcará o seu futuro. A partir daí passa a ambicionar matar todas as mulheres que o perturbam emocionalmente. Carlota é a excepção. Por ser supostamente pura merece a sua devoção. 
 
Archibaldo concebe planos para assassinar estas mulheres, mas nunca consegue consumar os crimes. Todavia as mortes acabam por ocorrer por motivos que lhe são alheios (como acidentes ou suicídio). 
 
Pelo facto de as ter desejado, sente-se culpado e tal afirma perante os investigadores criminais. Estes, porém, declaram-no legalmente inocente. Os pensamentos não são crime. São-no, apesar de tudo, na cabeça de Archibaldo, que acredita que a caixa de música obedece à sua vontade.
 
De facto, a única “mulher” que consegue matar, incinerando-a, não é real. É um manequim feito à imagem de Lavinia, uma das suas potenciais vítimas. Na série de mulheres que deseja assassinar, fracassa com as verdadeiras, tem sucesso com a falsa. É, de alguma forma, ainda uma criança. Só consegue “brincar” com bonecas. Também só bebe leite, recusando sempre álcool, mesmo nos bares, como se não tivesse atingido a idade maior. 
 
Quando descobre que Carlota o atraiçoa, decide alvejá-la após casar-se com ela. Mas Alejandro (o namorado secreto) antecipa-se e dispara antes de Archibaldo porque não aceita ser abandonado. Archibaldo falha assim duplamente a ligação com Carlota: na vida e na morte. Num e noutro caso é o rival que realiza com sucesso as acções ansiadas. 
 
Num momento de epifania, “afoga” a caixa mágica, abdicando do poder que supunha possuir. Sentindo-se liberto, consegue finalmente relacionar-se com uma mulher (Lavinia) sem desejar a sua morte. Pelo fogo a “matou”, pela água a recupera. 
 
As peculiaridades e temas recorrentes de Buñuel estão inscritos em várias cenas do filme: ridicularização dos valores das famílias burguesas, das convenções morais, das ordens militares e religiosas; humor e ironia (na cena da joalharia, os vendedores fazem o elogio da honestidade ao mesmo tempo que vigarizam Archibaldo); surrealismo (Archibaldo corta-se enquanto se barbeia e vê sangue a escorrer por toda a parte, incluindo por cima da ama morta, numa alucinação que o transporta para esse primeiro “assassinato”); horror (cena de incineração do manequim que representa Lavinia); relações afectivas perversas (discussões e agressividade como forma de quebrar a monotonia da relação; ciúme e obsessão como prova de amor; tortura psicológica como vingança).

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