segunda-feira, 7 de setembro de 2020

174ª sessão: dia 10 de Setembro (Quinta-Feira), às 21h30


Esta Quinta-Feira vamos assistir ao encontro das pulsões buñuelianos com os ideais e os laivos românticos de Emily Brontë. Feito com actores bem distantes do que seria o ideal e adequado para as personagens, supostamente metralhado de música nos sítios errados, mas com um guião trabalhado durante anos, O Monte dos Ventavais, Abismos de pasion no título original, é a nossa próxima sessão no auditório da Casa dos Crivos.

Sobre as restrições com que o cineasta espanhol se deparou no México, o nosso conhecido Miguel Marías escreveu que "Buñuel soube logo servir-se das limitações que se tinha visto obrigado a aceitar. Não estava disposto a renunciar aos seus princípios, nem a fazer concessões morais, nem a submeter-se aos imperativos do género mais demagógico do cinema mexicano, mas soube ver que para sobreviver tinha que parecer aceitar as regras do jogo, e uma vez contratado como realizador, tentar-se apoderar da obra. Para isso não podia ser tão directo e agressivo, tão brutalmente explícito como quando tinha uma liberdade quase absoluta, mas recorrer à astúcia e à subtileza, actuar de forma insidiosa e sorrateira para modificar ou inverter o sentido “oficial” das histórias que podia filmar. Para conseguir isto, Buñuel dispõe de três recursos fundamentais, característicos de toda a sua obra: a construção da narrativa, o humor e a interrupção. 

"Isto quer dizer que Buñuel se começa a servir da montagem para algo mais do que chocar o espectador justapondo coisas cuja reunião parecesse insólita e surpreendente (bispos e esqueletos, por exemplo), embora de valor metafórico demasiado evidente. Sem dúvida que a sua experiência como montador de documentários o fez ver que uma cena pode mudar de sentido modificando a ordem dos planos que a compõem, que a interposição de uma sequência a outra pode alterar o significado de um filme, por mais “neutras e objectivas” que pudessem ser as suas imagens, e que isto ainda era mais fácil de conseguir com planos rodados por si próprio. Consequentemente, todos os filmes de Buñuel, pelo menos a partir de Susana, têm uma estrutura exemplar, frequentemente muito complexa, —Ele, Ensaio de Um Crime— e ao mesmo tempo muito clara. As peças básicas da construção buñueliana são as elipses, a associação de imagens nas transições, os flashbacks —às vezes encaixados dentro doutros—, os inserts analógicos, algum plano de ruptura, o apontamento breve que sugere algo que não mostra ou que desperta um eco amplificador (os finais de Ele e O Anjo Exterminador, por exemplo), etc. Por outro lado, quando a sua opinião sobre as personagens não coincide com a do produtor e dispõe de actores tão desajeitados e empolados como Fernando Soler para os encarnar, Buñuel procura acentuar as suas deficiências como intérpretes para transformar um “digno pai burguês” num fantoche hipócrita, ou uma “esposa e mãe que triunfa sobre o vício” numa fera enraivecida de ciúmes e inveja (em Susana). Esta direcção caricatural dos actores permite-lhe, além disso, um certo grau de estilização que o liberta do naturalismo superficial que o público costuma exigir. Por último, Buñuel tenta combater, na medida do possível, a suposta “coerência” da narrativa convencional, e para isso recorre a todo o tipo de interrupções: saltos temporais, sequências oníricas, piadas, planos de animais, etc. A partir do êxito crítico de Os Esquecidos, Buñuel pôde propor algumas histórias que, sob uma aparência mais ou menos melodramática, o permitissem tratar temas que lhe interessavam (Robinson Crusoe, 1952; Ele; O Monte dos Vendavais, 1954; Ensaio de Um Crime), o que ocasionalmente lhe permitiu um controlo praticamente absoluto sobre aquilo que fazia, e o que explica que nesta etapa difícil da sua carreira tenha  conseguido realizar várias das suas melhores obras, e talvez mesmo a melhor (El)."

Já sobre o filme em questão, e na sua auto-briografia, Luis Buñuel disse-nos que “em 1930, eu e Pierre Unik tínhamos escrito um argumento baseado em O Monte dos Vendavais. Como todos os surrealistas, fui profundamente inspirado por este romance, e sempre quis tentar o filme. A oportunidade chegou finalmente no México, em 1953. Sabia que tinha um guião de primeira ordem, mas infelizmente tive de trabalhar com actores que o Oscar tinha contratado para um musical—Jorge Mistral, Ernesto Alonso, uma cantora e dançarina de rumba chamada Lilia Prado, e uma actriz polaca chamada Irasema Dilian, que apesar das suas feições eslavas foi escolhida para irmã de uma métis mexicana. Como era de esperar, houve problemas terríveis durante a rodagem, e basta dizer que os resultados foram problemáticos na melhor das hipóteses. Há uma cena de que me lembro vívidamente, no entanto, em que um velho está a ler a uma criança, da Bíblia, uma passagem pouco conhecida que não aparece em todas as edições mas é bem superior ao Cântico dos Cânticos. Claro, o autor teve de pôr estas palavras nos lábios de incrédulos para as poder imprimir."

Já João Bénard da Costa, na sua folha da Cinemateca, escreveu que «Wuthering Heights, o lendário romance a que se resume a obra da mais genial das irmãs Brontë, Emily (1818-1848), foi publicado em 1847. Obra-prima da gothic novel ou do black romance, expoente máximo do romantismo inglês, O Monte dos Vendavais, para lá do sucesso que sempre o acompanhou, foi "livro de cabeceira" dos homens do surrealismo, que descobriram nele, nos anos 20-30, um precursor das suas obsessões e temáticas, com a absoluta exaltação do amour fou e a sua delirante imagética. Em 1933, a revista Minotaure, órgão "oficial" do movimento, dedicou-lhe um número especial e histórico, ilustrado por quase todos os pintores surrealistas.

«Nesses mesmos anos, Buñuel, que comungava com os seus companheiros de geração da paixão pela obra de Emily Brontë, pensou levá-la ao cinema, tendo chegado a escrever uma sinopse em colaboração com outro surrealista, Pierre Unik. Por falta de meios, o projecto não se concretizou.

«Vinte anos guardou Buñuel essas páginas na gaveta, até que no México teve, finalmente, a oportunidade de concretizar esse velho sonho. Disse numa entrevista: "Um dia, Dancigers chamou-me: queria fazer uma comédia com Jorge Mistral, Irasema Dilián e Lilia Prado, que tinha sob contrato. Eu disse-lhe que tinha escrito um argumento, o do Monte dos Vendavais. Um argumento impossível para aquela distribuição de actores: não convinha nada. Mas a vontade de fazer aquela história de que gostava tanto acabou por vencer-me."»

Até Quinta-Feira!

Sem comentários:

Enviar um comentário