sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Abismos de pasión (1954) de Luis Buñuel



por António Cruz Mendes

O Monte dos Vendavais, de Emily Brontë, sempre foi um romance inspirador para os surrealistas e Buñuel, com Pierre Ulrik, tentou adaptá-lo para o cinema na época em que filmava A Idade do Ouro. Contudo, só vinte e quatro anos mais tarde, no México, pôde realizar esse projeto. 
 
O filme não agradava inteiramente a Buñuel. O guião foi alterado (o nome de Ulrik não consta da ficha técnica), os atores principais (que haviam sido contratados por Dansigers para uma comédia) não lhe pareceram os mais apropriados e a música (Buñuel sugeriu Wagner e, depois, partiu para Cannes) acabou por invadir a despropósito todas as cenas. Mas, o resultado final está à altura da obra literária, da beleza esquisita do seu sopro romântico e demencial. 
 
O contexto da história já não são as montanhas inglesas dos ventos uivantes, mas as áridas planícies mexicanas e o título do filme passou a ser Abismos de Pasión, mas o “amor louco” de Heathcliff (rebatizado Alejandro) e de Catherine (Catalina) continua no seu centro, permitindo a Buñuel retomar um dos seus temas preferidos: o poder subversivo da paixão amorosa, que apenas obedece ao instinto e ignora regras e convenções sociais, a moralidade e o bom senso sobre o que se alicerça todo o edifício social. 
 
O filme concentra-se num momento do romance, o regresso de Heathcliff, e altera-lhe o final. Os diálogos iniciais informam-nos do contexto da história: Alejandro era uma criança pobre que foi adotada pelo pai de Catalina, com quem desenvolveu uma relação apaixonada. Porém, Ricardo, irmão de Catalina, odeia-o e, depois da morte do seu pai, obriga-o a viver como um simples criado. Catalina casou-se com Eduardo, um proprietário vizinho, rico, o que lhe permitiu manter a sua condição social. Vivem ambos com Isabel, irmã de Eduardo. 
 
Nas primeiras sequências, Catalina dispara sobre os abutres pousados nas árvores ressequidas – com um só tiro, afirma, sem sofrimento, fá-los passar da liberdade à morte. Eduardo coleciona borboletas que fixa com um alfinete, ainda vivas, a um estirador, antes de as emoldurar, decorando as paredes. Secas, deixariam de sofrer e a sua beleza seria imortal. Isabel, jovem e sensível, revolta-se contra o sofrimento infligido aos animais. Alejandro que, sentindo-se desprezado, tinha abandonado a casa onde foi acolhido, regressa, numa noite tempestuosa, arrombando a pontapé as portadas de uma janela que a governanta, Maria, se recusa a abrir porque ele “é um demónio”. 
 
Nunca esqueceu Catalina, por quem continua perdidamente apaixonado. Egocêntrico, selvagem, violento e atormentado, regressou rico e com o desejo de se vingar de todos os que o humilharam e fizeram sofrer. A paixão de Catalina por Alejandro também se mantém viva, mas ela oscila entre a alegria e o desespero, incapaz de sufocar o seu amor, como de trair o casamento. Os dois revisitam os lugares secretos da sua paixão, procuram e encontram os objetos que lhes recordam os sonhos juvenis – a faca, a corda e a lanterna, os equipamentos do veleiro que os levaria dali. Mas, Catalina está grávida de Eduardo e esse passado, já distante, não é recuperável. Por culpa de quem? O amor e o ódio vivem entrelaçados. 

Pelo seu lado, Eduardo, que representa a fidelidade, a amizade e a segurança, teme a paixão de Catalina por Alejandro e vê Isabel, ingénua e sentimental, tornar-se num instrumento da sua vingança. 
 
Alejandro instalou-se em casa de Ricardo, que perdeu a sua riqueza no jogo e se transformou num bêbado miserável. Um empréstimo hipotecário prestes a vencer-se deixou-o nas mãos do homem que sempre odiou. As casas de Ricardo e Eduardo são o espelho de dois mundos: a primeira é um exemplo de degradação física e moral, a segunda da boa ordem burguesa. Contudo, elas avizinham-se, opõem-se mas intersectam-se: Alejandro invade a casa de Eduardo para resgatar Catalina e Isabel, que Alejandro despreza, mas com quem se casou para castigar Catalina e humilhar o seu marido, foi viver para a casa de Ricardo. 
 
O clima de violência adensa-se. Todos, Eduardo, Isabel, Ricardo, desejam a morte de Alejandro, mas todos se deprimem face à força da sua vontade. A imagem terrífica da mosca atirada à aranha antecipa o desenlace. As sequências finais, pontuadas pela música de Wagner e pela leitura do Livro da Sabedoria, serão patéticas, dignas do belo-horrível ultrarromântico de um Soares dos Passos: só fora deste mundo a reunião dos dois amantes será possível.

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