quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

82ª sessão: dia 16 de Fevereiro (Sexta-Feira), às 21h30


Quase no fim do ciclo Chaplin, veremos o primeiro dos seus filmes na Inglaterra natal em que teve que se refugiar para dar continuidade à sua obra. Assim, Um Rei em Nova Iorque é a nossa próxima sessão. Não é mera coincidência que a vida desse rei partilhe semelhanças com a do Chaplin que o interpreta, nem que se aborde a "caça às bruxas" dos anos cinquenta. Esperemos por Sexta-Feira para ver se vemos algo de novo que possa iluminar as nossas vidas nas desventuras desse rei acabado e desse miúdo acossado.

François Truffaut, em Les Films de Ma Vie,  depois de comparar o Rei Shahdov a Jesus Cristo e os anti-comunistas a Judas, resumiu que "o mal-entendido é sempre o mesmo: tendo colado um rótulo sobre uma obra arbitrariamente, não gostamos nada de ter que mudar o rótulo. Se Chaplin, com a sua idade, continuasse a fazer de palhaço com as suas célebres roupas, seria de uma falta de eficácia chocante, não é difícil de perceber, isso. Além disso, é bem óbvio que um homem que rodou setenta e cinco dos filmes mais famosos e mais admirados da história do cinema não tem que receber conselhos de ninguém em relação à construção de uma história.

"Quanto a mim, não encontrei diferenças entre a primeira e a segunda parte do Rei em Nova Iorque por não ter cometido o erro de me apressar a rir, simplesmente. Li os jornais como toda a gente e estou ao corrente das desventuras de Chaplin com a América; sabia do tema do seu novo filme e da profunda tristeza dos seus filmes anteriores. Era previsível que Um Rei em Nova Iorque fosse o mais triste dos seus filmes e também o mais pessoal. É mesmo preciso ser dito que o homem que fez A Quimera do Ouro é capaz de fazer o seu público rir ou chorar à vontade, se assim o quiser; conhece os truques todos, é um ás e nós sabemos disso. Se não choramos mais do que nos rimos ao ver Um Rei em Nova Iorque, é porque Chaplin achou que era preciso falar-nos à cabeça em vez de ao coração. A terrível doçura do seu filme fez-me pensar em Noite e Nevoeiro, que também recusava as facilidades do panfleto e da vingança."

Na sua folha da Cinemateca sobre o filme, Bénard da Costa debruça-se sobre os paralelos entre Chaplin e o rei Shadhov, escrevendo que "em primeiro lugar, há a considerar a escolha que fez do papel do rei para si próprio. É uma escolha ambígua. Por um lado, Chaplin parece querer identificar-se, como se nos dissesse que era tão absurdo considerar a hipótese de um rei comunista como considerar a hipótese dele próprio ("rei de Hollywood e multi-milionário) ser comunista. Ou seja, a escolha da realeza (o vagabundo transformado em rei) parece deliberada para demonstrar até que ponto podia ir o delírio persecutório e para colocar a sua personagem - como ele próprio - acima de toda a suspeita. 

"Mas, mesmo nesses estatuto, e mesmo com essa verosímil intenção, a grandeza de Chaplin não o deixou cair na facilidade de um monarca altruísta e desinteressado. Muito pelo contrário: o Rei Shahdov, do imaginário reino da Estrovia, está longe de ser um personagem nobre e idealista. Pelos planos iniciais (aliás dos melhores deste filme desconcertante e insólito) advínhamos que Shahdov fora um rei pouco amado e bem pouco democrático (o boneco com a sua efígie que a multidão brande). Em "off", vai dizendo que uma das maiores chatices da vida moderna são as revoluções. Chegado à América, ri-se do seu povo ("we fooled them") e só pensa no dinheiro que conseguiu sacar (o que não deixa de ser autobiográfico). Trata com complacente cinismo (e alguma amargura) a rainha e o casamento que o exílio lhe permite desfazer. Revela-se femeeiro e cai com facilidade nas armadilhas de Dawn Addams. E, quando se sabe arruinado, pouco tempo resiste aos "degradantes" convites da televisão americana. Para ganhar dinheiro, sujeita-se a tudo, até a essa inenarrável operação estética que dá lugar a um dos melhores "gags" do filme (o ataque de riso do rei e o "lifting" a estoirar). Se é certo que terá tido um plano para consagrar a energia atómica a fins pacíficos, o seu interesse nos mesmos planos nada tem de redentor. O rei é venal, o rei é cobarde (o susto e a fuga perante os supostos agentes do FBI), o rei não resiste a saias, o rei não resiste a cheques. Mais ou menos, são traços que foram sempre imputados a Chaplin e que ele assume com uma crueldade que se vira, sobretudo, contra a personagem que interpreta e, através dela, contra si próprio. 

"O momento capital (porventura o mais assombroso momento deste filme) é o da sua declamação do monólogo de Hamlet. Para lá do tom que escolhe ("bombastic way") Chaplin detem-se no verso famoso "Thus conscience does makes cowards of us all". Ao chegar à palavra "consciência", os copos partem-se e o rei diz que perdeu o fio à meada. Mas o fio é claro na assunção dessa cobardia que, depois, tanto o leva a recear o interrogatório da Comissão. E o famoso "gag" do elevador só sublinha até que ponto ele se sabe enrolado nas malhas que tece."

No seu blog, Jesús Cortés admite que "não é preciso mais que abrir um jornal para comprovar a (triste) modernidade deste monarca deposto quase wellesiano - e contemporâneo, é preciso lembrá-lo, da Europa cartesiana que o Professor Alexis de Le déjeuner sur l´herbe de Renoir postulava como solução ilusoriamente integradora - que foge aterrorizado do velho continente e da sua Comunidade Europeia em nascimento, ao mesmo tempo que os Estados Unidos se enrolavam na espiral obscura do anti-comunismo sem pensar duas vezes, com o dinheiro que faltava roubar no seu país, que gosta - e que precisa: não conhece outra forma de vida - do luxo, abertamente ingrato para com a sua terra (e para com a que o quer acolher, da qual se aproveitará à mínima oportunidade) e que não desdenha publicitar um whisky horrível na televisão para continuar a viver no Ritz. 

"O Chaplin jovem, que era tão pouco hábil em se adaptar a qualquer circunstância, por mais simples que fosse, para o qual qualquer acto mundano podia ser um quebra-quabeças, sempre vítima de mal-entendidos, transforma-se de forma lógica em Verdoux, Calvero, no Rei Shahdov e finalmente nessa constelação romântica e rejuvenescida dos seus perfis no monumental A Condessa de Hong Kong com que encerra a sua carreira, aqueles a que já nada pode importar, que se riem - entre dentes ou às gargalhadas - da sua sorte e não têm problema nenhum em admitir de forma buñuelliana que todo o caminho percorrido pode ter sido para nada... mas que pelo menos (como Tati em Parade) se querem assegurar de que algo tão inalcançável como o que o público tenha sido capaz de entender que era a sua participação no espectáculo perdure. O prazer, as lembranças, os aplausos, a paixão partilhada."

Até Sexta!

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