por José Oliveira
«I'm a dreamer. I have to dream and reach for the stars, and if I miss a star then I grab a handful of clouds.» - Mike Tyson aka Kid Dynamite
The Kid, o miúdo, a criança, o garoto, o puto. Na história da América, da arte sem compromissos à cultura de massas, do cinema ao desporto, da música à vida nas ruas, esta figura é de importância central. E para se perceber o porquê é preciso entender que tal nominação não tem nada a ver com a idade. No
baseball
um dos ídolos eternos que é ainda uma das existências americanas mais
acarinhadas de que há memória é o nascido Theodore Samuel Williams
(Ted Williams na camisola, ou ainda The
Greatest Hitter Who Ever Lived)
mágico da torção corporal que toda a vida insistiu com a imprensa,
os fãs e os demais que o tratassem simplesmente por The
Kid, e
mesmo depois de ter passado pela Grande Guerra e conseguidas as
insígnias nunca se chateou com o nick. No cinema, milhões, que vão desde o inadaptado dos inadaptados no palco de aparências que é a terra, rasgado misfit, Dancin' Kid do Johnny Guitar de um Kid Nicholas Ray, até... a um The Cincinnati Kid do durão dos durões Steve McQueen abençoado por Ray Charles. E acabando com a música... toda a geração dos 27, de Janis Joplin à recente Amy Winehouse só quiseram ser The Kids, eternamente, tal como Patti Smith, apenas ou tudo Just Kids. Isto para não se desempoeirar as lendas e os mitos, o velho Oeste, um Billy the Kid, etc. E se a lista é exígua e deixa de fora exemplos óbvios, só prova da riqueza, do trágico e da complexidade do que está em jogo.
Não se referiu nenhuma figura política, que as há tanto na contracultura como esmagadas e esquecidas em praça pública mas não vencidas no seu espírito. Isto para se chegar à conclusão óbvia que é Charles Chaplin que também leva a coroa neste campo. Ele que tem a graça do mais fascinante drifter e o laconismo e a ousadia de um político tout court, à maneira do melhor Barack Obama ou do mais poético e visceral Martin Luther King. I have a dream... A importância e definição intemporal do The Kid é óbvia e não necessita de ganga teórica ou intelectual para além do instinto e da emoção, da beleza acoplada: tendo 5 ou 50 ou 100 anos urge entender que o mundo poderia ser um lugar melhor e há que ser duro nessa demanda; percebendo-se que só mantendo vivo o coração que já foi inocente e belo antes de se ver os pecados do mundo é que se vai lá. E assim, Charles Chaplin, depois de tantos filmes curtos em que passando pelos esquemas, circos e amarras da sociedade como o mais esplêndido e furioso cometa que pretende destruir para reconstruir, chamou à sua primeira longa-metragem The Kid, assumindo, humildemente e de forma prodigiosa, as funções de realizador-actor, argumentista, produtor, montador e autor da partitura musical, entre tudo o resto que não cabe nos créditos oficiais.
E mal começa o conto rapidamente vamos perceber que há dois The Kid, dois miúdos, duas crianças, dois garotos, dois putos. Pelo menos, porque da Mãe que abandona o filho e se arrepende até aos anónimos que se vislumbram nos cantos dos enquadramentos, haverá inúmeras desmultiplicações que permitem continuar a acreditar nisto tudo. A narrativa, a histórinha da carochinha sem um João Ratão escancarado, é simples e não fosse a intensidade e a experimentação de Chaplin poderia ser perfeitamente inconsequente. Intensidade e experimentação que vai ao cúmulo de rapidamente se quebrar o muro que existe entre o ecrã e os olhos dos espectadores, operando-se uma laceração nas normas dramatúrgicas do romanesco e ameaçando as prerrogativas gerais da época, pois Chaplin tanto nas decisões graves como na estupefacção olha para a câmara e para nós espectadores, inserindo-nos nos dilemas e nas questões, afastando a falsa distância e o conforto da ficção de águas-mornas, forçando-nos a ver aquilo que julgávamos inútil pela força do grandioso espectáculo cinemático: logo quando encontra o bebé e o destino trabalha a todo o gás para os juntar; na valeta, entre o vislumbre da sua infância a regressar e o ralo da sarjeta fatalista; quando lhe cose os trapinhos e inventa um berço de ouro ou na oposição absoluta da descoberta da doença alarmante; enfim, nesses beijos na boca que hoje fariam qualquer artista genial ir parar ao chilindró. Em todas essas cenas a câmara encara e descarna, fazendo-nos redescobrir os movimentos e as tensões (logo a coragem e o medo) básicas, oferecendo-nos de uma só vez um espelho, uma lupa e a possibilidade de transfiguração que poderá desembocar na redenção. Uma frontalidade que escava e revela os profundos estratos da emoção. O célebre fluxo e a pulsão de realidade que levava Chaplin a filmar sem parar, dos ensaios às variações infinitas das sequências e detalhes à primeira vista insignificantes, só busca a vitalidade, a vitalidade de uma falha, um sopro fresco do irracional que comporta o genuíno, enfim, um portentoso diálogo com a esfera dos mistérios.
Na mais linear e básica narrativa, busca-se o topo da montanha, para lá das nuvens. The Kid é, como outro grande recente e não reconhecido The Kid afirmou - o eterno Chaplinesco Sylvester Stallone com o seu chapéu bamboleando um pouco ridiculamente no topo da sua graciosa cabeça ao longo da saga Rocky - sobre o self-respect, a necessidade não só de cada ser gostar de si próprio e de isso ser essencial no caminho para a felicidade, mas também de se fazer o melhor possível e de se ser o mais delicado e aplicado seja qual for a posição social ou o modo de vida. Tanto a criança de 5 anos como o adulto que não cresceu segundo as normas de conduta sérias, se aprumam e são “vaidosos”, querem o melhor possível e conhecendo as artimanhas gerais devolvem as suas com a violência da justiça superior, ultra salomónica. Para um homem ser respeitável dentro de si mesmo há que respeitar o sagrado da responsabilidade intrínseca que é o talento e a paixão de cada um. E da vagabundagem à aristocracia tanto o Pai como o Filho tocam todas essas alturas e brilhos.
Evidentemente que são humanos, de carne e osso e em guerra com a dita alma, e assim tanto são briosos como em segundos deixam de ser “exemplo para alguém”. Como na sequência em que o Pai percebe que o miúdo pode ganhar a vida aos socos e torná-los ricos e não hesita em atirá-lo às feras, como no ganha-pão da negociata dos vidros. Todo esse flirt passageiro com a lama rima com a secção mais inesperada do filme, onde somos levados ao paraíso para assistirmos à nascença do pecado. Sem grandes preâmbulos percebemos que a ganância ou o ciúme estão em toda a parte, inclusive do “outro lado”, e secamente caímos mais abruptamente na realidade quando regressamos a ela. Antes ainda vimos a perseguição pelos telhados do puto de muitos anos ao filho amado, cúmulo e prova da sofisticação que o Chaplin realizador já tinha em termos rítmicos, na gravidade equilibrante e desequilibrante do ponto de vista e dos enquadramentos estudados em consonância com esse mesmo ritmo, a orquestração geral entre o aproximado e o distante, a combinação e justeza de tudo isso, terminando na mesma valeta anterior com o amor reforçado por aquilo que deve ser o chamado Amor Incondicional que só quem ama verdadeiramente alguém para lá de tudo poderá sentir.
No final, a entrada na casa é permitida. Pela Mãe original que um dia abandonou o filho, que viu Cristo pregado na cruz – a imagem mais misteriosa e só aparentemente deslocada de tudo – e que falou a dois vagabundos do “oferecer da outra face”. O que se passou entretanto, do abandono à sublime (e se nos textos de Chaplin tenho abusado de termos como “sublime” e derivados tem a ver com o tipo de brancura “estelar” em causa) assunção e gesto, é da ordem do calvário e do perdão para toda a gente. Mas sobretudo da força torrencial dos Encontros certos, prometidos, escritos algures, inadiáveis, seja o que for. E isso passou-se entre dois corações, um inocente e outro humilhado. E deu certo. E há que lutar por isso. É possível melhor oferenda? «All I want is to enter my house justified» confessava-se em Ride the High Country do Kid e intelectual Sam Peckinpah. E aconteceu.
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