quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

80ª sessão: dia 9 de Fevereiro (Sexta-Feira), às 21h30


Voltamos a um filme essencial e ainda envolto no mais profundo dos mistérios, Monsieur Verdoux. Inaugurou o nosso cineclube em 2016, numa carta branca a Pedro Costa, e será a nossa próxima sessão, agora inserida no ciclo Chaplin.

André Bazin mergulhou a fundo no filme, em Qu'est ce que le cinéma?, escrevendo que "é fácil prever o que as pessoas  vão encontrar  para  criticar  em Monsieur Verdoux. Há uma lista bastante completa dessas coisas  num artigo da Revue des Temps Modemes que vai tão longe quanto é possível em termos de deturpação. A autora  da crítica expressa-se de forma igualmente desapontada pelo trabalho de  Chaplin porque lhe parece ideológica, psicológica e esteticamente incoerente. "Os crimes do Monsieur Verdoux não são ditados nem por uma necessidade de legítima defesa nem para reparar injustiças, por uma ambição profunda ou pelo desejo de melhorar o que quer que seja no mundo ao seu redor. É triste ter gasto tanta energia e não ter provado absolutamente nada, não ter conseguido produzir nem uma comédia nem um filme com implicações sociais, e ter obscurecido as questões mais importantes."

"Uma má interpretação notável e graças à qual Monsieur Verdoux vai continuar um livro fechado para três quartos do público. Porque o que é que temos aqui - uma comédia ou um filme-tese? O seu propósito é provar ou mesmo explicar o que quer que seja? Os marxistas condenam Chaplin pelo seu pessimismo e por não enunciar claramente a mensagem que achavam que ele lhes devia desde o filme Tempos Modernos. E assim a distorção literária e política dão as mãos. Os que são a favor duma arte clássica com uma base psicológica vêem-se de acordo com os conscienciosos políticos enquanto ficam ambos cegos para com a necessidade maravilhosa de Monsieur Verdoux - a do mito."

Como também vamos rever o filme, podemos citar Jacques Rivette, que em Revoir Verdoux, perguntou "o que é Chaplin? Um homem livre. Monsieur Verdoux, quinze anos depois, é sobretudo isso: o filme de um homem livre (para retomar a fórmula de Rossellini, falando sobre Um Rei em Nova Iorque). Excepção, esse tipo de homem; regra, pois o Chaplin do Peregrino e de Verdoux, o Buñuel de Nazarín e do Anjo Exterminador, o Renoir da Regra do Jogo e de Helena e os Homens, mesmo o Brooks de Elmer Gantry, o Rossellini de Vanina Vanini, o Mizoguchi de As Irmãs de Gion, eis alguns cineastas que já têm em comum, deixando de lado as suas malícias, não serem apenas “metteurs en scène”; mais uma velocidade de escrita que pode passar, e frequentemente passa, por secura ou pobreza, um perfeito pudor das intenções que toma o esquematismo por máscara, e dissimula sob a rapidez do traço a riqueza das contradições profundas; todo um jogo, ao infinito, de trocas entre as significações e as causas. Ou seja: Verdoux é Charlot, mas é também Verdoux.

"Mais à frente: qual o objetivo do cinema? Que o mundo real, tal como é exibido na tela, seja também uma ideia do mundo. É preciso ver o mundo como uma ideia, é preciso pensá-lo como concreto; dois caminhos, os dois com os seus riscos. Quem parte do mundo e se instala nele arrisca-se fortemente a não atingir a ideia: tais são os perigos da atitude do “puro olhar”, que leva a submeter-se ao presente, a aceitá-lo tal como é, a contemplá-lo, como se diz – mas receio que da mesma forma que as vacas contemplam os comboios a passar, fascinadas pelo movimento ou pela cor, e com poucas hipóteses de compreender um dia o que anima esses objectos de fascinação e as faz olhar para a direita em vez da esquerda. Partir da ideia, risco contrário: é o que ocorre nove a cada dez vezes, e o campo da História (do cinema) é coberto pelos cadáveres desses filmes que todos os exercícios de respiração artificial só animaram no espaço de uma estreia."

Por fim, Lourcelles escreveu que Verdoux é "o mais intrigante dos filmes de Chaplin; o seu carácter enigmático – ninguém se pode gabar de ter compreendido exactamente o significado do filme – manteve-o intacto e protegido do envelhecimento. Uma parte do enigma reside na relação existente entre Verdoux e as diversas encarnações passadas de Charlot. A priori, o vagabundo e o assassino de mulheres não têm nenhum ponto em comum. Um exame mais atento revela que têm. Verdoux mantém pelo menos duas características de Charlot, uma anémica e inútil, a outra monstruosamente ampliada. Como Charlot, Verdoux é um ser sensível, dotado de compaixão, mostrando em certas ocasiões um grande coração como o dele. Possui também o sentido de adaptação social e a ferocidade de Charlot, tão característicos das primeiras curtas-metragens. De facto, ele estende à sociedade o seu reflexo: mercantilismo diabólico, destruição, exterminação. "Von Clausewitz disse que a guerra era uma extensão lógica da diplomacia. Monsieur Verdoux pensa que o homicídio é a extensão lógica dos negócios" (comentário de Chaplin pouco antes da estreia do filme). Verdoux é o produto lógico - e lúcido - da sociedade e da época em que vive. Precisamente por Verdoux ser lúcido, que se desdobre e se veja a agir, o filme pode-se tornar cómico. A sua comédia está mais próxima de De Quincey que do humor inglês tradicional e dá a este retrato de assassino uma dimensão profundamente inquietante, em particular devido a essa estranha serenidade que o herói manifesta nos seus crimes, no seu processo e diante da morte. Sem dúvida que ele se imagina inocente, e Chaplin não está longe de partilhar o seu ponto de vista. A ideia de Verdoux veio a Chaplin pelo intermédio de Orson Welles, que planeava uma biografia de Landru. Welles pediu a Chaplin para interpretar o papel principal. Mais tarde, Chaplin retomou o projecto por sua conta e creditou Welles no genérico para evitar qualquer acusação de plágio. Trabalha no guião de Novembro de 42 a Maio de 46. A rodagem decorre num só fôlego em 77 dias, com um atraso mínimo – para Chaplin! – de 17 dias em relação aos 60 previstos. Pela primeira vez na carreira dele, Chaplin usou e respeitou um plano de trabalho. Recorreu à colaboração técnica de Robert Florey, que foi sem dúvida parcialmente responsável por esta unidade e rapidez da rodagem, até aí desconhecidas por Chaplin. Este pensou em contratar Edna Purviance, a primeira parceira dele, para o papel de Madame Grosnay. Ela não satisfez nos ensaios, e foi substituída por Isobel Elsom. O filme alcançou um baixo sucesso comercial nos Estados Unidos e um sucesso de crítica na Europa. (Nos Estados Unidos, as reacções oficiais muito negativas vão consumar o divórcio entre Chaplin, acusado de comunismo, e a América). Imensamente surpreendente em relação ao que se esperava dele, como aliás foi o caso de todas as suas longas-metragens, Monsieur Verdoux desta vez ia longe demais para poder ser compreendido e assimilado imediatamente. A sua audácia, embora menor que a do Grande Ditador, consiste na relação com a sua época. O filme é suposto situar-se nos anos 30 mas a imensa desordem que evidencia mostra até que ponto Chaplin não « digeriu » a Segunda Guerra. Lemos em marca d'água quanto o colapso geral dos valores do antigo mundo o afectou e transtornou. A isto somam-se evidentemente, para acentuar a sua amargura, certos eventos da sua vida privada e as campanhas difamatórias a que eles deram origem. No plano formal, a mestria dele permanece a mesma, mas com um carácter confinado, um estreitamento voluntário, uma tendência à abstracção (em particular pelo uso intenso de lítotes) que vão bem em concordância com o clima de asfixia moral do filme. Os diálogos têm uma extrema importância: permitem, sobretudo nas cenas surpreendentes com a jovem desesperançada, alternar o pessimismo e o optimismo de Chaplin, apreendidos num equilíbrio particularmente instável. E é pelo diálogo apenas que este velho inimigo do cinema falado consegue dar um toque original a certos detalhes, a certas cenas, como a da florista confusa pela corte insistente que Verdoux faz ao telefone a Madame Grosnay. Monsieur Verdoux caracteriza-se finalmente por um vigor cómico muito negro, muito caricatural, que emerge por exemplo nas cenas em que aparece Martha Raye (o seu papel tinha sido escrito por Chaplin especialmente para ela). Isso não impede que o conjunto dos retratos femininos tenha uma grande variedade e nuances que foram frequentemente subestimadas. Certo, Monsieur Verdoux quer ser acima de tudo jogo de massacre. A permanente tentação humanista de Chaplin manifesta-se ainda assim, como um luar frágil a flutuar num oceano de cinismo e derisão. 

"Bibliografia: André Bazin: « Le mythe de Charlot » in « La revue du cinéma », nº9 (1948), republicado in André Bazin : « Charlie Chaplin », Éditions du Cerf, 1973 ; Robert Florey : « Hollywood d'hier et d'aujourd'hui », Prisma, 1948. O capítulo « En travaillant avec Charlot » é dedicado essencialmente à rodagem de Verdoux. Florey queixa-se que Chaplin acrescentou ao lado do nome dele no genérico como realizador associado o de Wheeler Dryden, meio-irmão e encarregado de Chaplin, que só trabalhou como assistente. Florey insiste na aversão de Chaplin a toda o requinte técnico : « O extraordinário no filme sou eu, diz ele, e não tenho necessidade nenhuma de movimentos de câmara extraordinários. » Também queria que lhe apanhassem sempre que possível os pés porque ele interpretava tanto com as pernas dele e os pés dele como com a sua cara. Ver também a autobiografia de Chaplin, « My Autobiography », Simon & Schuster, 1964, particularmente pelos conflitos dele com a censura, e o capítulo dedicado a Verdoux no livro de David Robinson : « Chaplin – His Life and Art », Londres, William Collins Sons and Co, 1985."

Até Sexta!

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