domingo, 26 de maio de 2019

Elena et les Hommes (1956) de Jean Renoir



por João Bénard da Costa

Embora este filme seja antecedido pela tradicional legenda prevenindo que qualquer semelhança entre os personagens reais e os do filme é pura coincidência, o personagem interpretado por Jean Marais, sob o nome de General Rollan, é uma das mais míticas e populares da história francesa da segunda metade do Século XIX: o general Georges Boulanger (1837-1891). 

Herói da guerra de 70, vencedor, em 71, da Comuna de Paris, Boulanger foi um típico “militar político” do qual, durante a década de 80, se esperou a salvação da França. A popularidade que teve junto das suas tropas só foi igualada pela que teve junto das mulheres; a sua coragem física era – diz-se – igual à sua beleza. Romântico tardio em plena Belle Époque, este misto de Sidónio e Mouzinho foi utilizado por quase todos os sectores políticos: uns viram nele o homem que podia acabar com o corrupto parlamentarismo e restituir à França um estado forte (“l'austérité, la propriété, la sûreté, l'autorité” - como se diz no filme); outros pensaram que ele seria o militar capaz de tirar a desforra da derrota da guerra franco-alemã de 70-71; uns sonhavam que ele restauraria a monarquia; outros que ele seria capaz de restituir ao regime republicano o apoio popular. A sua grande hora ocorreu em 1889 (o ano da acção do filme) quando do affaire Schneebelé (transposto, na obra de Renoir, como affaire Vidauban), em que o chamaram para ministro da guerra. Mas essa hora durou pouco. Conspirações falhadas, fundação do partido nacionalista (em torno da sua figura e para colher o prestígio dela) foram outras tantas decisões infelizes que tiveram um mau fim. Em 1890, Boulanger foi preso como traidor à República e condenado a prisão perpétua. Conseguiu fugir, mas acabou no ano seguinte, de um forma apropriada à aura romântica que o envolvera em vida: suicidou-se em Bruxelas sobre o túmulo de uma antiga amante. 

É este o plano de fundo histórico do filme de Jean Renoir, visto pelo realizador com um olhar que nada tem de inocente, embora também nada tenha de cruel. Renoir observa ironicamente Rolland e a Belle Époque, mas com a ironia de quem sabe que a história se repete e tais “romances” não terminaram com o século romântico. Quem tanto o acusou, a propósito deste filme, de fazer um divertimento gratuito, totalmente divorciado da realidade dos anos 50, estava certamente bem distraído do clima de então em França e do que se passaria num próximo 13 de Maio. Em 1958, como em 1956, “un chef, une autorité” estavam bem na ordem do dia. 

Se comecei por chamar a atenção para este ponto, é porque sobre ele pairou uma geral distracção e porque Renoir bem pode ter sido premonitório. Mas, evidentemente, não é isso o mais importante. Aliás, Rollan é apenas um dos homens em torno de Elena. E Elena é o centro do filme, com os homens que se vão mover à volta dela: o professor de piano, o magnate dos sapatos, Henri de Chevincourt (um dos mais ambíguos personagens masculinos de Renoir), o general e até o assombroso Eugène (enteado demasiado “marital”). Se tudo gira (em sentido próprio e figurado) à volta de Elena é porque esta é o lugar geométrico das duas grandes comédias que, como na Règle, e mais uma vez, são o cerne deste filme excepcional: a comédia do poder e a comédia do amor. Elena, que sonha servir a França, através do general, que sonha servir a família através dos sapatos de Martin e que sonha servir-se a si própria através de Henri (continuando, assim, a história do pobre príncipe polaco, seu primeiro marido que também, fatalmente, misturara a política e o amor), é sempre falsa e sincera em todos esses registos: personagem bifronte, como todas as mulheres de Renoir, irmã siamesa de uma outra Elena que é ela e não é ela, perde e ganha nas suas várias estratégias e acaba por se enredar nos meandros da intriga que procura conduzir: atira Rollan para os braços de Mme Escoffier, aborta o seu sonho de representar um grande papel político, acaba com Henri, representando e não representando, levada pela sua própria comédia ao único personagem que a soubera “mettre en scène”.

Este jogo de amores cruzados (que se desdobra no jogo Hector-Lolotte-Eugène-Denise e no jogo entre o compositor e o sapateiro) é uma farsa? É uma farsa a história política, com os conspiradores, os políticos, e o povo de pacotilha? Se o é, é-o no mesmo sentido das grandes comédias e óperas do século XVIII em que mais uma vez Renoir se inspirou. É talvez discutível (pense-se na Règle, na Carrozza, no Cordelier), dizer como Godard que este “é o mais mozartiano dos filmes de Renoir”. Mas, seja-o ou não, o que parece indiscutível é que é sob a inspiração de Mozart que, uma vez mais, esta obra se coloca. As perseguições, o permanente cruzamento dos personagens, os assombrosos segundos planos (sobretudo nas sequências inadjectiváveis do solar de Martin e da casa de má nota de Rosa La Rose) vêm directamente do teatro e da música das Bodas ou do Così, como Elena é a única sucessora contemporânea de Rosina e Fiordiligi. Só que, neste filme, também já intervém o universo mágico da Flauta que obteve esse adjectivo: é o universo introduzido pelos ciganos e, principalmente, por aquele plano do rapaz tocando clarinete, talvez o mais genial de toda a obra de Renoir. 

E quem pensar que tudo isto é fútil e que tudo isto é um inconsequente divertimento, terá que pensar a mesma coisa das óperas de Mozart (e, de facto, durante muito tempo, o pensaram): porque, esta “fantasia cinematográfica”, na sua construção e na sua “leveza”, jamais nos apresenta títeres ou caricaturas nas personagens de carne e osso total, de que se poderia seguir, com bem grandes surpresas, a nada leve história. Todos os personagens estão pintados a corpo inteiro, numa verdade tanto maior quanto maior é o seu tratamento como “marionettes” Como se diz no filme a “ligeireza” é uma forma de civilização. Como se insinua no filme, o acaso é outro nome da divina providência. 

E a canção final (“Oh nuit je te fais serment – d'oublier mon amant”) só nos conduz nesta história processada sob o signo de Heloísa e Abelardo, ao outro tema de Renoir: o da impotência masculina e o do isolamento final da mulher. 

in «As Folhas da Cinemateca – Jean Renoir», Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2005, pp. 156-160.

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