por João Bénard da Costa
Embora este filme seja antecedido pela tradicional legenda prevenindo que qualquer semelhança entre os personagens reais e os do filme é pura coincidência, o personagem interpretado por Jean Marais, sob o nome de General Rollan, é uma das mais míticas e populares da história francesa da segunda metade do Século XIX: o general Georges Boulanger (1837-1891).
Herói da guerra de 70, vencedor, em 71, da Comuna de Paris, Boulanger foi um típico “militar político” do qual, durante a década de 80, se esperou a salvação da França. A popularidade que teve junto das suas tropas só foi igualada pela que teve junto das mulheres; a sua coragem física era – diz-se – igual à sua beleza. Romântico tardio em plena Belle Époque, este misto de Sidónio e Mouzinho foi utilizado por quase todos os sectores políticos: uns viram nele o homem que podia acabar com o corrupto parlamentarismo e restituir à França um estado forte (“l'austérité, la propriété, la sûreté, l'autorité” - como se diz no filme); outros pensaram que ele seria o militar capaz de tirar a desforra da derrota da guerra franco-alemã de 70-71; uns sonhavam que ele restauraria a monarquia; outros que ele seria capaz de restituir ao regime republicano o apoio popular. A sua grande hora ocorreu em 1889 (o ano da acção do filme) quando do affaire Schneebelé (transposto, na obra de Renoir, como affaire Vidauban), em que o chamaram para ministro da guerra. Mas essa hora durou pouco. Conspirações falhadas, fundação do partido nacionalista (em torno da sua figura e para colher o prestígio dela) foram outras tantas decisões infelizes que tiveram um mau fim. Em 1890, Boulanger foi preso como traidor à República e condenado a prisão perpétua. Conseguiu fugir, mas acabou no ano seguinte, de um forma apropriada à aura romântica que o envolvera em vida: suicidou-se em Bruxelas sobre o túmulo de uma antiga amante.
É este o plano de fundo histórico do filme de Jean Renoir, visto pelo realizador com um olhar que nada tem de inocente, embora também nada tenha de cruel. Renoir observa ironicamente Rolland e a Belle Époque, mas com a ironia de quem sabe que a história se repete e tais “romances” não terminaram com o século romântico. Quem tanto o acusou, a propósito deste filme, de fazer um divertimento gratuito, totalmente divorciado da realidade dos anos 50, estava certamente bem distraído do clima de então em França e do que se passaria num próximo 13 de Maio. Em 1958, como em 1956, “un chef, une autorité” estavam bem na ordem do dia.
Se comecei por chamar a atenção para este ponto, é porque sobre ele pairou uma geral distracção e porque Renoir bem pode ter sido premonitório. Mas, evidentemente, não é isso o mais importante. Aliás, Rollan é apenas um dos homens em torno de Elena. E Elena é o centro do filme, com os homens que se vão mover à volta dela: o professor de piano, o magnate dos sapatos, Henri de Chevincourt (um dos mais ambíguos personagens masculinos de Renoir), o general e até o assombroso Eugène (enteado demasiado “marital”). Se tudo gira (em sentido próprio e figurado) à volta de Elena é porque esta é o lugar geométrico das duas grandes comédias que, como na Règle, e mais uma vez, são o cerne deste filme excepcional: a comédia do poder e a comédia do amor. Elena, que sonha servir a França, através do general, que sonha servir a família através dos sapatos de Martin e que sonha servir-se a si própria através de Henri (continuando, assim, a história do pobre príncipe polaco, seu primeiro marido que também, fatalmente, misturara a política e o amor), é sempre falsa e sincera em todos esses registos: personagem bifronte, como todas as mulheres de Renoir, irmã siamesa de uma outra Elena que é ela e não é ela, perde e ganha nas suas várias estratégias e acaba por se enredar nos meandros da intriga que procura conduzir: atira Rollan para os braços de Mme Escoffier, aborta o seu sonho de representar um grande papel político, acaba com Henri, representando e não representando, levada pela sua própria comédia ao único personagem que a soubera “mettre en scène”.
Este jogo de amores cruzados (que se desdobra no jogo Hector-Lolotte-Eugène-Denise e no jogo entre o compositor e o sapateiro) é uma farsa? É uma farsa a história política, com os conspiradores, os políticos, e o povo de pacotilha? Se o é, é-o no mesmo sentido das grandes comédias e óperas do século XVIII em que mais uma vez Renoir se inspirou. É talvez discutível (pense-se na Règle, na Carrozza, no Cordelier), dizer como Godard que este “é o mais mozartiano dos filmes de Renoir”. Mas, seja-o ou não, o que parece indiscutível é que é sob a inspiração de Mozart que, uma vez mais, esta obra se coloca. As perseguições, o permanente cruzamento dos personagens, os assombrosos segundos planos (sobretudo nas sequências inadjectiváveis do solar de Martin e da casa de má nota de Rosa La Rose) vêm directamente do teatro e da música das Bodas ou do Così, como Elena é a única sucessora contemporânea de Rosina e Fiordiligi. Só que, neste filme, também já intervém o universo mágico da Flauta que obteve esse adjectivo: é o universo introduzido pelos ciganos e, principalmente, por aquele plano do rapaz tocando clarinete, talvez o mais genial de toda a obra de Renoir.
E quem pensar que tudo isto é fútil e que tudo isto é um inconsequente divertimento, terá que pensar a mesma coisa das óperas de Mozart (e, de facto, durante muito tempo, o pensaram): porque, esta “fantasia cinematográfica”, na sua construção e na sua “leveza”, jamais nos apresenta títeres ou caricaturas nas personagens de carne e osso total, de que se poderia seguir, com bem grandes surpresas, a nada leve história. Todos os personagens estão pintados a corpo inteiro, numa verdade tanto maior quanto maior é o seu tratamento como “marionettes” Como se diz no filme a “ligeireza” é uma forma de civilização. Como se insinua no filme, o acaso é outro nome da divina providência.
E a canção final (“Oh nuit je te fais serment – d'oublier mon amant”) só nos conduz nesta história processada sob o signo de Heloísa e Abelardo, ao outro tema de Renoir: o da impotência masculina e o do isolamento final da mulher.
in «As Folhas da Cinemateca – Jean Renoir», Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa, Setembro de 2005, pp. 156-160.
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