quarta-feira, 22 de maio de 2019

131ª sessão: dia 23 de Maio (Quinta-Feira), às 21h30


É com enorme prazer que regressamos às cores vivas e à leveza desarmante dos filmes tardios de Jean Renoir, que segundo Jean-Luc Godard é o "mais mozartiano" dos cineastas. Depois de French Cancan, com um Gabin apaixonado pelas mulheres e pelo trabalho, assistiremos às aventuras amorosas da princesa Elena na Paris de inícios do século XX. Elena et les hommes é a nossa próxima sessão.

Em Jean Renoir vous parle de son art, programa cujas introduções foram publicadas originalmente no volume Jean Renoir: entretiens et propos [Cahiers du Cinema – Petite Bibliothèque, 2005] e depois traduzidas e publicadas em português no catálogo brasileiro A Vida lá Fora: O Cinema de Jean Renoir, o realizador resume laconicamente que "Elena et les hommes é Ingrid Bergman. E Ingrid Bergman assume uma forma pouco comum. O que me fez rodar este filme foi sobretudo a possibilidade de trabalhar com Ingrid Bergman. Deutschmeister foi quem me sugeriu esta aventura e eu aceitei de bom grado, naturalmente, porque Ingrid é uma mulher maravilhosa, eu amo-a na vida e na tela. A minha ideia era fazer qualquer coisa de cómico. Sentia que ela precisava daquilo, que aquelas situações cómicas iam casar muito bem com o momento da sua carreira. Eu não pensava muito no sucesso do filme e podia estar errado, pensava mesmo era nela.

"Depois disso, vieram outros elementos puxar-me o tapete, deixando-me absolutamente envolvido. Adorei trabalhar com Jean Marais. Jean Marais imprimiu ao filme uma espécie de graça, de elegância inimitável. O filme também me deu a oportunidade de conhecer Greco, de a admirar e apreciar profundamente.

"(...) Para voltar a Ingrid, eu queria tentar cenas cómicas com ela. Infelizmente, no último minuto, Deutschmeister e eu descobrimos que o General Boulanger tinha os seus herdeiros. Eram pessoas extremamente legais e evocar a memória do seu antepassado podia incomodá-los, irritá-los e fazê-los sofrer. Por isso, decidimos abandonar o General Boulanger e fazer outro filme. Um filme sobre o mesmo tema, ainda se trata de um general, de uma conspiração e de um golpe de Estado, mas essa reviravolta nos acréscimos não me ajudou a fazer um bom filme. Fiz o melhor que podia improvisando quase tudo. Ainda assim, de vez em quando consegui construir situações em que Ingrid estava maravilhosa e situações em que os restantes actores estavam maravilhosos. Veja só, pude dar um grande papel a um actor que adoro, Jouanneau. Ele foi absolutamente maravilhoso. Pierre Bertin também é extraordinário."

Nos Cahiers du Cinéma, em 1957, Jean-Luc Godard escreveu que "dizer que Renoir é o mais inteligente dos cineastas é o mesmo que dizer que ele é francês até à ponta dos cabelos. E se Elena et les Hommes é “o” filme francês por excelência é porque é o filme mais inteligente do mundo. É arte e teoria da arte. Beleza e o segredo da beleza. Cinema e, simultaneamente, explicação do cinema. 

"A nossa bela Elena não é mais do que uma musa de província. Sem dúvida. Mas uma que busca o absoluto. Pois que filmando Vénus entre os homens, Renoir, durante hora e meia, sobrepõe o ponto de vista do Olimpo ao dos mortais. Perante os nossos olhos, a metamorfose dos deuses cessa de ser um slogan de bazar para se tornar um espectáculo de uma comicidade comovente. Através do mais belo dos paradoxos, com efeito, em Elena os imortais aspiram a morrer. Para se estar certo de viver, é preciso estar certo de amar. E para estar certo de amar é preciso estar certo de morrer. Eis o que Elena descobre nos braços dos homens. Eis a estranha e dura moralidade desta fábula moderna disfarçada de opera buffa. Trinta anos de improviso durante as rodagens fizeram de Renoir o primeiro técnico do mundo. Concretiza num só plano o que outros fariam em dez. Nunca um filme foi tão livre como Elena. Mas, no fundo, a liberdade é uma necessidade. E nunca um filme foi tão lógico."

No Dictionnaire, Jacques Lourcelles escreve que "em Le carrosse d'or, French Cancan e Elena et les hommes, que compõem uma espécie de trilogia, Renoir mostra o seu reconhecimento a três formas de espectáculo : a commedia delI'arte, o café-concerto e o guinhol. Porque em Elena, mesmo que não se vejam nem pano de boca nem palco nem fios, estamos instalados no guinhol. O guinhol representa uma dimensão permanente do universo de Renoir, tanto nos seus dramas (lembremo-nos do prólogo de La chienne) como nas suas comédias. Aqui ele triunfa ao mesmo tempo no estilo e no que se poderia chamar de moral nesta história sem moral. Para o estilo, são os mesmos entrelaçados que os de A Regra do Jogo, mas ainda mais estilizados, mais audaciosos no esquematismo voluntário, no burlesco, na bufonaria. No plano de fundo, nas cozinhas e nos corredores, uma agitação de empregadas e de ordens, de ingénuos excitados e donzelas apaixonadas, imita o universo já caricatural dos adultos, dos amos e dos grandes deste mundo. Isso concede à mise en scène uma riqueza fascinante feita de arabescos, de jogos das escondidas instalados de forma sumptuosa no espaço dos planos. Para a moral, Renoir declara aqui o seu distanciamento de tudo, e a a estética do guinhol concede a essa distância uma expressão simultaneamente agradável, anódina e extrema. Certamente que o autor do Rio Sagrado, a sua última obra «séria», já não vê a seriedade em parte alguma, tirando talvez nos prazeres do amor e da indolência. Todas as personagens são fantoches, tal como o general Rollan, livremente inspirado no célebre general Boulanger, mas os menos ridículos são aqueles que aceitam trocar as suas ambições, a sua vontade de agir e de mudar o mundo pelo simples consentimento ao amor e à felicidade privada. Como nada é simples em Renoir, há apesar de tudo uma melancolia e uma dilaceração secreta nesse consentimento. Derradeira filosofia do cineasta? Ele adoptou tantas posições e pontos de vista diferentes sobre o mundo que seria bem arriscado escolher entre eles, ainda que por razões de cronologia, o que teria um valor testamentário maior que o dos outros. O testamento de Renoir, esse Proteu, é o conjunto dos seus filmes e a totalidade da sua obra.

"N.B. Ao contrário de Carrosse d'or, que foi rodado essencialmente em inglês e depois dobrado em francês (para a versão francesa) e em italiano (para a versão italiana), Elena et les hommes foi rodado simultaneamente em francês e em inglês, em grande parte. Isso proporcionou mil dificuldades a Renoir, constrangido a recorrer ainda mais do que queria a improvisações audaciosas. Nesse sentido, esta dupla rodagem sem grandes meios financeiros acentuou indubitavelmente a beleza específica do filme e da sua mise en scène. «É impossível lançarmo-nos para duas versões sem ter duas equipas diferentes», diz Renoir. «Se terminei Elena, foi um milagre. [...] Era um risco todos os dias, em que me desenvencilhava com piruetas e truques de magia [...] Mesmo o final! Foi um final que fui obrigado a improvisar num dia com a canção de Greco» («Cahiers du cinéma» n° 78). Há várias diferenças a separar a versão francesa e a versão inglesa, intitulada Paris Does Strange Things. Esta última suprime ao começo a personagem de Jean Claudio (o compositor ajudado por Elena). Em vez disso, há um prólogo em que, depois de alguns planos de Paris, Mel Ferrer (de quem ouvimos apenas a voz) mostra na sua biblioteca as «Memórias de Rollan» e, numa gaveta, o diário íntimo de Elena. A voz de Mel Ferrer vai comentar de forma fastidiosa as imagens de uma ponta à outra da acção (sobrepondo-se frequentemente aos diálogos), como se o público inglês e americano fosse incapaz de compreender a narrativa por si mesmo. Há um número muito grande de pequenos pedaços de sequências que são cortados (e frequentemente são os mais engraçados) mas só há uma sequência que desaparece integralmente: a do duelo de Mel Ferrer com o seu adversário do café. Renaud Mary (o líder da equipa de confiança de Rollan), que aparece em vários planos, é substituído por George Higgins (o Martinez de Carrosse d'or), que não é tão bom como ele. A versão inglesa é inferior à francesa sob todos os pontos de vista. É mais curta doze minutos."

Até Quinta!

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