terça-feira, 28 de maio de 2019

132ª sessão: dia 30 de Maio (Quinta-Feira), às 21h30


João Bénard da Costa não esteve com rodeios ou meias-palavras quando descreveu o filme que exibiremos esta semana na Casa do Professor como "a obra-prima de Bergman. Digo-o desde já, para ir direito ao que importa." Persona, de Ingmar Bergman, com Bibi Andersson e Liv Ullmann, monumento artístico dos anos 60, é então a nossa próxima sessão.

Na sua segunda auto-biografia, Bilder (1990), feita para corrigir a primeira, Bergman om Bergman (1970), em que achou ter sido conduzido pelos entrevistadores, Ingmar Bergman declara que "quando se lê o guião de Persona, pode parecer uma improvisação, mas é planeado de forma meticulosa. No entanto, nunca rodei tantas repetições durante a realização de qualquer outro filme. Quando digo repetições não me refiro a tomadas repetidas da mesma cena no mesmo dia. Refiro-me a repetições que são uma consequência de ter visto as provas diárias do dia anterior e não ter ficado satisfeito com o que vi.

"Começámos a filmar em Estocolmo e e fizemos uma partida em falso.

"Mas pusemos a coisa em marcha, devagar e com rangidos. De repente, gostava de dizer: "Não, vamos fazê-lo melhor, vamos fazê-lo desta ou daquela maneira, e aqui podíamos fazê-lo de forma um bocado diferente." Nunca ninguém ficou chateado. Está metade da batalha ganha quando ninguém se começa a sentir culpado. O filme também beneficiou, naturalmente, dos fortes sentimentos pessoais que emergiram durante as filmagens. Em suma, era um plateau feliz. Apesar do trabalho fatigante, tive a sensação de que estava a trabalhar com liberdade absoluta tanto com a câmara como com os meus colaboradores, que seguiram as minhas voltas e reviravoltas."

Num artigo para a revista Cineaction depois reproduzido em Sexual Politics and Narrative Film (1998), Robin Wood, revisitando as suas visões sobre Persona, escreve que "Elisabet é uma mulher profundamente perturbada e portanto potencialmente perigosa. Joga muito a favor do filme que não a consiga "explicar" em termos de psicologia pessoal: a resistência dela ao patriarcado, a recusa dela à "ideologia dominante" é suficiente. Aqueles que permanecem confortáveis no interior dela não conseguem perceber isto. Durante a minha vida, tanto fui "Alma" como "Elisabet," e percebo-o muito bem. Também percebo que "Alma" vai fazer sempre parte de "Elisabet," tal como "Elisabet" fez sempre parte de "Alma." A ideologia é o nosso lar—o lar em que crescemos. Enquanto permanecemos dentro dela, por mais contraídos e frustrados que nos possamos sentir, não temos "nada com que nos preocupar. É tão seguro": sabemos as regras. Assim que passamos para o lado de fora, renunciando-a, ficamos sozinhos, não temos em que nos apoiar, já não há mais regras, temos de descobrir umas novas ou construir as nossas. Embora menos abrupto, é tão assustador e desorientador como a experiência do nascimento, quando a criança deixa a segurança e o calor do útero (mesmo que parecesse às vezes um bocado desconfortável) por um estranho novo mundo em que a sua primeira experiência, normalmente, é ser esbofeteado e obrigado a gritar. Também é uma experiência necessária como o nascimento, se a nossa civilização quer progredir e redimir-se a si própria. Daí a ambivalência dos nossos sentimentos para com Elisabet: ela é perigosa, assustadora, "outra," mas admirável e necessária. (normalmente são os que se recusam a ver as duas mulheres como mais do que "personagens," para serem julgadas ao nível da psicologia e do comportamento pessoal, que a acham um "monstro") O que Bergman não consegue fazer (porque é um homem? porque é habitante de um país onde se acredita que todos os problemas sociais foram resolvidos por muitos anos de governo quase socialista, mas em que o patriarcado e o capitalismo continuam a ser as forças dominantes? ou só porque é Bergman?) é dramatizar a possibilidade de construir um novo "lar" de solidariedade e apoio mútuo. Nunca poderia ser tão seguro como o lar que se abandonava, uma vez que carece da sanção da tradição, mas torna a vida e o desenvolvimento adicional possíveis, permite-nos desenvolver a nossa criatividade, e não a negar com raiva impotente. No entanto, é surpreendente quão longe o filme vai—pelo menos até ao fim da primeira parte—na sugestão dessa possibilidade.

"A rejeição de Elisabet ao seu papel na ordem patriarcal fica notavelmente completo, recusando qualquer concessão; pode-se ver o seu rigor como o aspecto positivo da sua impiedade, ou ver a impiedade (que quase destrói Alma) como a sua infeliz consequência. Antes do seu silêncio, ela rejeitou tanto o casamento como a maternidade, e não apenas como ideias abstractas. O momento em que ela rasga a fotografia do filho é profundamente chocante, registando a brutalidade, a asfixia dos sentimentos "naturais" e o custo psíquico que o rigor impõe: ela não pode permitir ser sugada de volta para a vida que rejeitou, e para as emoções que lhe pertencem. (Regressarei mais tarde à atitude de Bergman para com a maternidade, já que se torna um ponto crucial dos últimos episódios do filme.) O silêncio dela é a culminação lógica deste processo, ao mesmo tempo a afirmação mais rigorosa da sua recusa em participar num sistema que repudia e um recuo—tornando-se o silêncio tanto uma barreira protectora como uma asserção de resistência. Também antecipa de forma surpreendente a posição que certas feministas desenvolveram a partir de Lacan: a própria linguagem é patriarcal, sendo a conquista da linguagem um passo de entrada decisivo na Ordem Simbólica. O dilema que isto provoca (se a linguagem é patriarcal, como é que uma feminista pode falar?) não é só de Elisabet."

Em resposta a este artigo de Wood, Göran Persson, psiquiatra sueco fascinado com a obra de Ingmar Bergman, escreve pouco tempo depois na mesma revista que "no filme, Elisabet torna-se dolorosamente consciente daquilo que se pode qualificar como o seu complexo de Electra, e das memórias de ter sido abusada sexualmente. Há muito nela que foi reprimido, incluíndo o seu desejo de ser mãe, o amor pelo filho e a capacidade dela em estabelecer uma relação madura com um homem. Sente-se do lado de fora, sem qualquer chance de ser aceite por pessoas normais e decentes. Durante o filme, descobre que as pessoas normais e decentes (a enfermeira Alma é certamente tão normal e tão decente como qualquer pessoa podia pedir, dada a informação que recebemos primeiro) podem muito bem alimentar exactamente os mesmos sentimentos que ela condenou em si mesma, e pode-se sentir assim integrada no círculo humano. O chupar do sangue é a confirmação deste facto.

"Mesmo no final do filme, vemos Elisabet a interpretar Electra outra vez. Deixou assim o papel de espectadora que interpretou durante o filme e voltou a ser a actriz activa. É um momento muito curto, uma centelha apenas, mas mostra Elisabet durante a fase agonizante e reflexiva, não quando está prestes a partir-se a rir. Há duas interpretações possíveis: ou está mais confiante em si mesma e, devido a este facto, pode nutrir sentimentos mais profundos, ou então está de volta à sua vida antiga e no seu nível antigo de funcionamento, talvez com um par de gestos e tons de voz novos no seu repertório. Esta última interpretação pode parecer um bocado niilista: os espectadores nunca aprendem o que quer que seja, e portanto a arte não tem qualquer proveito. Pode-se ficar com esta sensação quando se lêem algumas das avaliações críticas de Persona. E o que é que eu próprio retirei de Persona depois de ver o filme uma vez? Fui abalado, mas não fazia ideia como, ou pelo quê. Não compreendi grande coisa. Teve efeitos inconscientes? Não sei."

Até Quinta-Feira!

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